sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

O Naturalista: do amador ao cientista.

                                                                                                                       Herbert Araújo


Garça Egretta thulla. Esta foto é uma cortesia de Vinicius Cavalcante, um Jovem e competente naturalista que conheci no curso de Ciências Biológicas.

A ciência é feita com razão e emoção. Esta é a afirmação que cada vez mais se verifica nas discussões epistemológicas recentes, ainda que com alguma resistência. No que se refere às ciências da natureza, a figura do naturalista, apaixonado pelos estudos de campo e pelas estranhas observações e experiências que sempre nos fizeram entender o mundo ao nosso redor, representa mais do que ninguém o entusiasmo como motor do conhecimento. Precisamos de uma sociedade que não chame de louco o homem que observa animais e que não veja como herói o que carrega uma arma.

Especialmente entre o Renascimento e o fim do século XIX (quando estudar a natureza era uma das atividades mais extraordinárias que a sociedade européia conhecia), os naturalistas promoveram grandes mudanças no nosso conhecimento. A Lei da Gravitação Universal, o heliocentrismo e o estudo da evolução das espécies, estão entre as mais revolucionárias heranças que os naturalistas nos deixaram. Além de terem proposto novos métodos para a produção de conhecimento, primordial para o desenvolvimento de uma sociedade.

Há muita confusão acerca do que significa Naturalismo, por duas razões básicas: a primeira, é que esta palavra designa ao mesmo tempo uma escola literária (as Escolas Realistas dividem-se em três estilos: o Realismo, o Naturalismo e o Parnasianismo) e os estudos de fenômenos do mundo natural (berço das ciências da natureza), nosso foco aqui. Popularmente a palavra ainda adquire outros significados, distantes das questões científicas. As Escolas Realistas nas artes - todas sendo uma reação contra o Romantismo – mantêm estreitas relações com a Ciência e Filosofia que se renovavam quando do seu surgimento.

Se você acha que a existência dos naturalistas é coisa de séculos atrás, precisa conhecer as grandes contribuições existentes no pensamento contemporâneo. Do psicólogo Moscovici (defensor do "novo naturalismo", que não se opõe ao culturalismo) a Gerald Durrel, desde os mais voltados à Filosofia até os mais envolvidos com a biodiversidade e biologia da conservação até documentaristas entusiastas e ilustradores, encontraremos grande diversidade (e alguns excêntricos).

O naturalista do qual falamos aqui é um intelectual, mas que não perdeu a sensibilidade de perceber na natureza o real sentido dos nossos conhecimentos. Embora o Renascimento tenha sido importante para a Europa avançar nessa direção, o irresistível impulso da observação sistemática da natureza já se manifestava bem antes, por exemplo, entre os orientais, que no ano de 1054 registraram na China, a explosão de uma estrela na constelação de Touro com tamanha precisão que foi possível encontrar pelo espaço os destroços da explosão com nossos telescópios modernos.

Por isso, um dos pontos mais difíceis na definição de “naturalista” é que ele não se restringe à sociedade européia após o Renascimento, que imortalizou o termo. Ainda bem que ele se torna inconfundível pela paixão de observar a natureza e por sua capacidade de unir diferentes áreas do conhecimento naquilo que chamamos de compreensão do mundo natural.


Naturalistas revolucionários.

Temos que reconhecer, que esse prazer pela observação é o impulso que através dos tempos reaproximou o homem de sua realidade, desenvolveu a agricultura desde o neolítico, fez surgir nossos calendários, melhorou nossas raças e cultivares, nossa saúde, enfim, nos trouxe até aqui. Claro que precisaremos sempre de avanço na política, no direito, na educação e em outras áreas do conhecimento, da nossa cultura (e repensar, criticar a própria Ciência). Mas, tantas espécies foram destruídas por nós e outras tantas ameaçadas, que nossa cultura necessita reencontrar a natureza enquanto há tempo. Isto é sim uma questão cultural.

“Tudo nos incita a pôr termo à visão de uma natureza não humana e de um homem não natural.”

     (Moscovici)

Na atmosfera inquiridora do Renascimento, Leonardo Da Vinci, embora não seja geralmente mencionado como um naturalista, mas principalmente como inventor, artista, etc., escreveu que se poderia inferir a idade de uma árvore a partir dos anéis de crescimento anual do tronco, além de dissecar cadáveres para melhor compreender a anatomia humana. 

Com o racionalismo em alta juntamente com o antropocentrismo, os humanistas cravavam no pensamento da época o distanciamento entre o homem e a natureza, além de serem indiferentes ou hostis perante as ciências naturais, como fazia Francisco Petrarca no século XIV, no advento do Renascimento:

“Mesmo que essas coisas fossem verdadeiras, elas não seriam de nenhum auxílio para nos assegurar uma vida feliz. Pois qual seria a vantagem de conhecer a natureza de animais, pássaros, peixes e répteis, enquanto se permanece ignorante da natureza do homem, sem saber ou se interessando de onde ele veio e para onde vai?”

         Esse também era o modo de pensar de alguns seguidores do São Tomás de Aquino (influente teólogo da Idade Média), leitores de Aristóteles e Platão que não tinham inclinação às ciências naturais (e quando tinham, buscavam harmonizá-las ao cristianismo). Com o pensamento humanista sempre arraigado a tais tradições. Mas para evitar injustiças, vale lembrar que Aristóteles foi um grande observador do mundo natural.

Por outro lado, a retomada dos autores clássicos por tradições divergentes fez surgir o naturalismo renascentista, que valorizava a natureza e buscava nela as explicações para o mundo em suas “próprias” leis. Dentro do naturalismo, estão diferentes visões simpáticas à ciência, como o materialismo e o positivismo da ciência ortodoxa atual, o naturalismo “animista”, que como os vitalistas acreditavam que a natureza possui alma (animistas) ou forças inexplicáveis (força vital, dos vitalistas).

Na astronomia, Nicolau Copérnico (1473-1543) publicou em 1503 o livro De revolutionibus orbium coelestium, o qual propunha a hipótese de que o Sol e não a Terra estava no centro do Universo. O grande avanço desta obra foi que ela demonstrava serem mais precisas as descrições astronômicas quando retirava-se a Terra do centro do Universo.

Ir ao campo ganhava um novo significado. Além da caça, da agricultura e dos passeios, o Velho Mundo passa a conhecer a revolucionária e prazerosa prática de construir novos conhecimentos pela observação da natureza: a História Natural.  

Enquanto a onda de observação da natureza se espalhava pela Europa, surgiam trabalhos como Herbarium (1530), do herbalista Otto Brunfels (1464-1534) e De Plantis, do médico e botânico italiano Andrea Caesalpino (1519-1603) -seguidor de Aristóteles- conhecido como o primeiro taxonomista vegetal e do zoológo e botânico Konrad Gesner (1516-1565), que publicou postumamente em 1561 o trabalho História natural das plantas de Valerius Cordus de Oberhessen (1515-1544). Gesner é conhecido principalmente pela sua grande obra História dos animais, que com suas mais de 4500 páginas foi imediatamente aclamada e séculos depois ainda fascinava o grande Georges Cuvier! O corolário desse período, talvez tenha sido os trabalhos de Francis Bacon (1561-1626), que lançou as bases do método indutivo, uma sistemática de estudos da natureza a partir de dados empíricos.

Para conhecer um pouco mais sobre os avanços no estudo da biodiversidade desde a antiguidade, leia o texto A Grande Árvore da Vida.


Voltando à física e astronomia, a “revolução copernicana” é definitivamente firmada com os trabalhos do alemão Johannes Kepler (1571-1630), que confirmou definitivamente a teoria de Copérnico e do italiano Galileu Galilei (1564-1642), que entre muitas contribuições, introduziu o uso do telescópio na astronomia e uma eficiente metodologia de testes para as leis científicas em condições controladas.

Difícil eleger uma obra em meio a tantos feitos de proporções épicas. Naturalistas revolucionários.

No século XVII, a Biologia recebe duas grandes contribuições: a invenção do microscópio que permitiu a observação dos microrganismos por Antonie van Lewenhoek (1632-1723) a descoberta da célula, publicada em 1665 pelo físico Robert Hooke, no seu livro Micrographia. Na verdade, Hooke acreditava se tratar de canais por onde passava a seiva das plantas. Mas o termo “célula” foi também e melhor empregado por Nehemiah Grew, tratando-as, já em 1682, como vesículas com diferentes formas e tamanhos nas raízes de diferentes plantas. Ele identificou funções como armazenamento de óleos essenciais e ácidos no parênquima do fruto, não mais como meras caixas (Hook chegou a utilizar o termo “boxes” para designá-las). Contribuição semelhante foi dada por seu famoso contemporâneo Malpighi, com quem divide o título de pai da Fisiologia Vegetal e cujas observações foram estendidas a animais.

Desperta um gigante:

Reprodução de uma das edições do
          "Principia", de Newton.
Em 1729, surge a maior e mais importante obra científica do século XVIII: PHILOSOPHIAE NATURALES PRINCIPIA MATHEMATICA, do grande físico e matemático inglês Isaac Newton (1643-1727). Newton desenvolveu um sistema teórico capaz de explicar matematicamente, desde a queda de maçãs, até o movimento dos corpos celestes, passando pela descrição de fenômenos mecânicos como o lançamento oblíquo. Com ele surgiu a Lei da Gravitação Universal, que além de mudar os rumos da astronomia, reinou por quase duzentos anos como a mais completa e abrangente lei da física e até hoje é uma de suas teorias mais importantes (só foi complementada em 1915, pela teoria da relatividade geral, do alemão Einstein). Newton seguia o método cartesiano, baseado na dedução matemática, mas ao contrário de Descartes, ele realizou muitos experimentos e observações aliados às suas deduções.

Um "detalhe" importante: Descartes foi muito importante para a ciência na medida em que contribuiu para nossa forma de análise e dedução. Mas sua contribuição não ficou isenta de efeitos colaterais nocivos. A influência do pensamento cartesiano, como mostram as discussões recentes dentro da filosofia das ciências naturais, mas não só nelas, é um dos grandes empecilhos à busca por um pensamento holístico e sistêmico, além de dificultar a compreensão adequada dos sistemas biológicos em suas propriedades emergentes. Porque propriedades emergentes são praticamente invisíveis a um método que baseia-se na separação do todo em partes.

Com isso, estavam lançadas as bases para o vertiginoso desenvolvimento científico dos séculos XVIII e XIX. O método indutivo (indução, que vai do particular para o geral) foi a base para a elaboração da Teoria Celular, desenvolvida pelo zoólogo Theodor Schwann (1810-1882) e pelo botânico Mathias Schleiden (1804-1881), ambos alemães. Nas ciências da vida, foi uma das teorias mais amplas já desenvolvidas, mas tal avanço não seria ainda o maior, perto do que estava para vir...

Ergue-se outro gigante na Inglaterra:

Ilustração da obra "Origem das Espécies" de
         Charles Robert Darwin.
Em 1859, o já renomado naturalista Charles Darwin publica no "A Origem das Espécies", extenso livro resultante de 20 anos de estudos, a sua teoria da Seleção Natural como mecanismo que impulsiona a evolução das espécies. Esta foi considerada por muitos a maior mudança na compreensão do mundo natural desde que surgiu a ciência moderna, como defende Ernst Mayr entre outros. Darwin chegou às suas conclusões ao mesmo tempo que Alfred R. Wallace, outro naturalista inglês com quem trocou correspondências. A Origem das Espécies trouxe uma densa revisão dos sistemas de classificação, conhecimentos paleontológicos, embrionários e biogeográficos com vários processos ecológicos descritos minuciosamente pelas suas observações ao redor do mundo.

Para ler mais sobre os desdobramentos do pensamento de Darwin, veja a série Dez Argumentos em Defesa da Evolução.

Maior ainda teria sido o avanço se Darwin tivesse tido contato com Gregor Mendel (1822-1884), o monge que, cultivando ervilhas e realizando experiências com elas, desvendou os princípios básicos da hereditariedade. Pena que os trabalhos do monge só foram devidamente reconhecidos após sua morte. Mendel é, com justiça, considerado o pai da Genética.



Os trabalhos de História Natural, de grande importância para o desenvolvimento da Biologia e da Ciência como a conhecemos hoje, floresceram em grande parte dentro da teologia natural, diga-se de passagem, na cosmovisão cristã. Portanto, a teologia natural se baseava geralmente na ideia de que Deus havia criado um mundo perfeito. Se por um lado essa cosmovisão adiou por vários séculos a investigação das nossas origens, por outro, a idéia de um mundo perfeito criado por um ser de sabedoria suprema aguçou a curiosidade pelas “leis” que regiam a natureza. Uma faca de dois gumes: enquanto no Renascimento falava-se em leis próprias da natureza, na teologia natural, tais leis eram criação da inteligência de Deus. Nesse sentido, os trabalhos de Newton não provocaram grandes mudanças.

"Desde Descartes que pensamos contra a natureza, certos de que a nossa missão é dominá-la, subjugá-la, conquistá-la. (...) O humanismo é a filosofia de um homem cuja vida sobrenatural escapa a esse destino (natural)homem que é sujeito num mundo de objetos e soberano num mundo de sujeitos."

                                                                (Morin. Grifo nosso

Além de explicar a grande questão que inquietava os naturalistas da época (como as espécies evoluíam, o que até então era só uma hipótese complicada), Darwin rompe com algumas tradições do pensamento que ainda eram fortes na época, como o essencialismo platônico. Introduzindo o pensamento populacional em substituição ao essencialismo para a compreensão das formas de vida. Assim, fala-se também em “revolução darwiniana”, pois além das mudanças de paradigma (do essencialismo para gradualismo, do fixismo para o evolucionismo), Darwin, mesmo não se interessando em atacar os dogmas do cristianismo, inova também por discutir em uma linguagem estritamente científica, livre do dogmatismo religioso, a existência de leis naturais (no Renascimento, bem como entre os vitalistas, havia muitas crenças e exoterismo misturados ao naturalismo). De quebra, ele nos deu o grande presente de sairmos do isolamento que a cultura ocidental nos impôs. De um certo modo, "voltamos" a pertencer à natureza ao mesmo tempo que avançamos no nosso conhecimento e desenvolvemos nossa cultura.


"esta dualidade antitética homem/animal, cultura/natureza, esbarra contra toda a evidência: é evidente que o homem não é constituído por duas camadas sobrepostas, uma bionatural e outra psicossocial, é evidente que não transpôs nenhuma muralha da China que separasse a sua parte humana da sua parte animal; é evidente que cada homem é uma totalidade biopsicossociológica."
                                                                                                            (Morin)



Palavras finais (sobre um novo começo)

E por que falamos disso? Em parte, porque estamos caminhando para o sexto espasmo global de extinção em massa junto com o aumento do efeito estufa, e em parte, porque todos nós sabemos -ou deveríamos aprender- o quanto é benéfico dedicarmo-nos a aprender sobre os fenômenos naturais entre os quais a nossa vida se inclui. E aos que não são dados ao estudo aprofundado, que tal aprender a respeitar aquilo que você não consegue explicar, nem recriar, caso destrua?

Os intelectuais que tratam do assunto, são muitas vezes incapazes de distinguir entre seleção natural e nazismo. Não sabem distinguir ciência evolutiva de pseudo-ciência? Sabem, mas as ideologias invadem o discurso. O reducionismo metodológico predomina nos modelos de ciência que visam a proteção da natureza. Tanto nas ciências sociais como nas ciências naturais. E temos perdido muito tempo, recursos e biodiversidade com discussões inócuas, porque frequentemente a disseminação das ideologias defendidas por esses autores precede o interesse em entender o que realmente está acontecendo à nossa volta, com a vida da qual somos todos parte.

Se por um lado a ecologia profunda não trouxe uma solução definitiva, tampouco o utilitarismo capitalista, ou o materialismo que se vale do discurso marxista para reduzir a natureza a um mero "recurso" a ser consumido na busca por um desenvolvimento, matéria passiva a ser transformada pelo trabalho humano, jamais serão capazes de defendê-la. Em uma sociedade que distingue o humano do natural, como esperar que a natureza seja matéria-prima para a justiça social e para o desenvolvimento social? Não há uma fronteira nítida, apenas um continuum, entre nós e o resto da natureza.

Da química à ecologia, o conhecimento recente tem mostrado claramente nossa ligação indissociável ao mundo natural. Resta agora encontrarmos o caminho para que o nosso conhecimento fragmentado consolide de vez esse reencontro. Grandes avanços foram dados nessa direção e mantemos acesa a esperança de que, chegará o dia, em que nossa cultura reconhecerá uma questão fundamental: quando lutamos por florestas, estamos cuidando do passado e do futuro da nossa sociedade. Pois aquilo que chamamos de "selvagem" é na verdade a base da nossa cultura, da nossa existência. Nossa vida não é um fenômeno isolado.


Referências:

BAKER, John R. The cell-theory: a restatement, history, and critique. Quarterly Journal of Microscopical Science, v. 3, n. 9, p. 87-108, 1949.

DIEGUES, Antônio Carlos Sant'Ana. Etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. Hucitec, 2000.

DIEGUES, Antonio Carlos Sant'Ana. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 1996.

GIFFONI, L. China: o despertar do dragão – viagem ao milagre econômico chinês. Belo Horizonte: Editora Leitura, 2007

            MORIN, Edgar. O paradigma perdido: a natureza humana. 1973.

            RONAN, Colin A. História Ilustrada da Ciência: Da renascença à revolução científica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, v. 3, p. 23-8, 2001

            LINKS E SITES:
            
            HERBARIUM (OTTO BRUNFELS)
             


quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Memórias de um Bacurau: ontogênese de biólogos.

Em 2010, ingressou na Universidade Estadual da Paraíba uma turma de Ciências Biológicas com pouco mais de quarenta integrantes. Pouco se sabia sobre cada um deles e muito menos qual rumo tomariam a partir dali. Alguns viam o curso como uma segunda opção, outros, como uma primeira opção para descobrir algo novo para suas vidas e outros, finalmente, eram completamente apaixonados pelas investigações acerca de como a vida acontece. É muito difícil saber o que levou cada um a chegar ali. O que se descobriu depois foi que eles ainda tinham desafios muito maiores do que poderiam imaginar e não importava o quanto foi difícil terem chegado ali, fato é que precisariam ainda de muito amadurecimento e força para seguir daquele ponto em diante.



A força de que precisavam, foi construída lentamente a partir do método mais eficiente que a humanidade já conheceu para gerar força: a união. É estranho o modo como a união acontece, porque ela começa de diferentes formas, mas eles tiveram tempo para testar várias delas. Logo de início, as afinidades emergem e formam-se logo pequenos grupos de pessoas parecidas, que pensam parecido, que têm um jeito parecido de fazer as coisas. De repente, aquele pessoal estranho ia se tornando cada vez mais familiar até um ponto em que estarem juntos era parecido com estar em casa. Logo, aquelas pessoas de diferentes histórias, lugares e personalidades estavam juntas de verdade e entre elas formavam-se preciosos laços de amizade.




O difícil mesmo foi o tal amadurecer. Porque cada um já tinha caminhado muito, aprendido muito, avançado muito em sua vida, mas já que estavam começando a viver algo diferente, muita coisa estava para ser reaprendida e só quem passa por isso sabe o quanto é difícil. Logo cedo, os problemas foram surgindo e com isso alguns daqueles que ali chegaram com tanto gás, com tanta vontade, foram aos poucos deixando a turma. Alguns descobriram que não era bem aquilo que estavam buscando, outros nem tiveram a oportunidade de descobrir, porque a vida às vezes parece escolher o caminho por nós. Se a união fazia a força de cada um, parecia que cada despedida levava um pouquinho de cada um também. Talvez o mais bonito foi ver aqueles que mesmo não tendo certeza, conseguiram encarar esses desafios de frente e ganhar a recompensa de cada passo dado.



Eu posso estar completamente enganado,
Eu posso estar correndo pro lado errado,
Mas a dúvida é o preço da pureza
E é inútil ter certeza”                   

(Humberto Gessinger)



Os tropeços foram incontáveis. Uns por causa própria, outros, não dependeram do esforço daqueles pequenos aprendizes que por ali passavam no intuito de dar o seu melhor num meio onde o seu melhor às vezes parecia ser nada. E quantas foram as vontades frustradas, as renúncias, os desabafos que ficaram guardados por já terem aprendido que eram tão pequenos e que já era muita ousadia estar ali. Afinal, o que são todas essas subjetividades perante a necessidade do cada um se manter de pé? Diante de tantos desafios? Nem por isso foram silenciados, nem por isso se renderam. A vontade de ir mais longe estava inacreditavelmente viva por todo esse tempo, a coragem de mudar era o que impulsionava aqueles seres em constante aperfeiçoamento e aprendizado.



Aquela turma, de um certo modo, não é mais a mesma. Aquelas noites sofridas, mas cheias de sentido, agora serão algo ausente das nossas rotinas e eternamente presentes no que hoje somos. Ela está eternizada em nossas memórias, mas esses cinco anos de convivência agora estão dando lugar a novos passos. Abrem-se novas portas, embora por essas mesmas portas vejamos cada um retomar seu caminho com o que leva de nós, deixando ao mesmo tempo algo de si conosco. Memórias compartilhadas. E já que ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, quem de nós passar novamente pelos corredores do CCBS, verá que de tudo aquilo, estarão presentes apenas as saudades de uma turma muito boa, da qual fizemos parte e que não mais está por ali.




Será mesmo possível dizer que fazem parte de nós aqueles que estão longe? Podemos dizer que aquilo que já não está mais ali faça parte de nós? Claro que sim! É por isso que dizem que durante aquele tempo estávamos sendo formados: como as esculturas, que assumem suas formas em parte pelo que já possuíam, em parte pelo que foi dali retirado, porque o aperfeiçoamento inclui sempre algumas perdas. Parece que, como lição final, aprendemos que é preciso ver que ficaram para trás aquela correria, aquelas aulas assistidas com cansaço e aquelas conversas curtas, onde aprendíamos um pouco mais sobre e com o outro, para chegarmos finalmente à compreensão de como tudo foi valioso em sua simplicidade. Foram chances únicas que tivemos para crescer e é bom que tenhamos levado o máximo, porque de todo esse tempo, nenhum segundo se repetirá.

Amizades feitas na fila da matrícula, momentos preciosos compartilhados. Risos no laboratório, noites em claro, on line, trocando ideias e sugestões para melhorar nossos trabalhos, tardes intermináveis de estudo e exaustão. Que entretanto terminaram! Mais rápido do que imaginávamos. Mas que deixaram marcas reais em todos nós, que deixaram em nós o que somos agora.



Todas as palavras do mundo seriam insuficientes para descrever tudo isso que vivemos, que fizemos e que agora relembramos. Mas eu não poderia deixar de escrever algo a essas pessoas que tanto contribuíram nessa caminhada. Não poderia deixar de relembrar e agradecer o quanto foi importante o apoio durante tempos tão duros. Este texto pequeno e simples é uma homenagem a cada um de vocês, a cada um de nós, aos nossos familiares e amigos que nos apoiaram durante essa guerra e também aos que infelizmente não permaneceram entre nós para presenciarem daqui de perto este tão pequeno e importante passo que demos.



Particularmente, eu poderia ter percorrido outros caminhos e escolhi esse, mas não fiz nada disso só por mim. Fiz também pela minha família, que me fez descobrir o gosto pelos estudos e pela natureza, fiz também para vocês, meus colegas, para que cada palavra minha dita em sala, num trabalho, numa discussão, não fosse simples falácia, mas uma tentativa de somar nossos conhecimentos, de hibridizar nossas perspectivas e ajudar no nosso avanço (perdoem se eu não consegui, mas eu realmente tentei fazer isso!). Fiz por um ideal; o ideal de que a transformação do mundo passa necessariamente por uma transformação em nós mesmos. É a nós que temos que mudar, melhorar. E o que fiz por mim, foi fazer o que eu tanto amo: Biologia. Sim, há muitas coisas que amamos nesse mundo, mas para mim, a biologia é um elo entre todas e entre mim e vocês.


E que fique aqui registrado, que pela UEPB passou uma turma de guerreiros, de estudantes ousados e barulhentos, marrentos até e que durante cinco anos eles lutaram com todas as forças contra limitações pessoais e institucionais, contra toda forma de subestimação, desafios e costumes inveterados. Que eles, apesar de muita dificuldade, alçaram vôos longos em ventos inconstantes para alcançar novos horizontes, servindo para mostrar que estavam errados aqueles que diziam que eles não iriam longe. Talvez, você ainda veja algum deles na UEPB (no mestrado, para os que farão por lá, ou então os que deixaram o TCC para o semestre seguinte –como eu, que com o TCC nos últimos ajustes, resolvi mudar minha linha de pesquisa e entrar de cabeça na Genética)... São só detalhes. De todo modo, esse povo é muito especial, uma mistura de grandes mentes e fortíssimas personalidades, que levarei comigo para onde eu for. Muito obrigado, aos amigos e professores, todos foram fundamentais e cada um, inesquecível!

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

A Grande Árvore da Vida

                                                                                                                              Herbert Araújo

Uma das formas mais importantes para entender como percebemos hoje a biodiversidade, é a maneira como a classificamos. Em tempos passados, quando as demais espécies eram mero recurso para a humanidade, foram classificadas como “nocivas”, “úteis” e “indiferentes”. Hoje, com o reconhecimento de uma história evolutiva, organizamos os seres vivos em novos tipos de árvores genealógicas: as árvores filogenéticas. Este post tem como objetivo mostrar as diferentes metodologias de classificação dos seres vivos a partir de exemplos concretos e breve discussão sobre seus aspectos metodológicos. Adicionalmente, visa esclarecer o processo de construção de árvores filogenéticas, tomando como base o Reino Vegetal para fins de explicação.





Como as plantas surgiram?

Como os diferentes sistemas de classificação das plantas baseiam-se nos diversos atributos das mesmas (incluindo desde aspectos genéticos até os ecológicos), o início de um estudo de sistemática vegetal requer, ao menos, uma breve discussão sobre a evolução dos vegetais, a fim de que possamos conhecer suas características sinapomórficas (comuns e exclusivas do grupo, no caso aqui abordado, dos vegetais). Tais atributos incluem aspectos morfológicos, anatômicos, genéticos, ecológicos, fisiológicos, enfim diversos, cada um vai prevalecer de acordo com o objetivo do sistema de classificação/categorização adotado.

Todas as plantas (das briófitas às angiospermas) apresentam uma característica em comum: embrião matrotrófico, ou seja, que cresce sendo nutrido pelo gametófito materno. Em briófitas (plantas avasculares -sem tecidos condutores), não só o embrião, mas toda a fase diplóide (2n) do ciclo de vida, permanece nessa condição; enquanto que nas traqueófitas (pteridófitas, gimnospermas e angiospermas, que possuem tecidos condutores), após a fase embrionária, o desenvolvimento da fase diplóide (esporófito) torna-se independente do gametófito haplóide. A denominação embriófitas, referente às plantas, baseia-se no fato de todas possuírem um embrião multicelular e matrotrófico.


Entre as algas verdes (Chlorophyta), encontram-se duas ordens (Charales e Coleochaetales) que assemelham-se mais às briófitas e às plantas vasculares do que às demais algas em diversas características. Tais características incluem crescimento apical, oogamia, plasmodesmos e retenção do óvulo no talo parental (tanto em Charales como em Coleochaetales).

Cladograma mostrando algumas mudanças transcorridas em ancestrais das plantas até que fosse formado o novo clado (embriófitas, ou seja: as plantas), de acordo com o pensamento atual.

Em contraste com outros grupos de algas, em Colaeochete, os zigotos permanecem presos ao talo parental, estimulando o crescimento de uma camada de células que os recobre e, em pelo menos uma espécie, essas células têm invaginações de parede, semelhantes às que ocorrem na junção do gametófito com o esporófito das briófitas (lembremos que em briófitas, o esporófito, que é a fase diplóide, é nutricionalmente dependente do gametófito -fase haplóide- e permanece preso a ele). Em Charales, as oosferas são produzidas em oogônios fechados por células longas, torcidas e tubulares, em posição análoga ao gametângio característicos das plantas sem sementes. Tais evidências anatômicas, encontram respaldo nas análises de algumas sequências de DNA, que também indicam que as algas Charales são as parentes vivas mais próximas das primeiras plantas.

A confirmação mútua entre características anatômicas e moleculares, especialmente no que se refere a sequências de DNA, fazem todo sentido. Afinal, a maior parte das características físicas (anatômicas, morfológicas, metabólicas...) são condicionadas geneticamente. Portanto, não é raro que inferências feitas com base nessas características coincidam com análises genéticas, uma vez que é com base no fenótipo (características físicas) que a seleção natural molda os genótipos (informação genética) dos organismos durante o processo evolutivo.



Brevíssimo Histórico da Botânica Sistemática
Gênio, é o trabalho de muitos associado ao nome de poucos para facilitar a memória” 
(Edward O. Wilson –Taxonomista e um dos mais eminentes biólogos evolucionistas).

PARTE I

Sistemas Não Baseados em Filogenia


Por volta de 370 anos antes de Cristo, Theophrastus (Teofrasto de Ereso) fez a primeira descrição completa de plantas conhecidas na sua época e classificou as plantas em árvores, arbustos, subarbustos e ervas. Os grupos por ele definidos eram estritamente artificiais. Em sua obra intitulada Historia Plantarum, classificou e descreveu cerca de 500 plantas e deu informações sobre suas propriedades medicinais.

Uma compilação relevante data do primeiro século da Era Cristã e é atribuída a Plínio, o Velho (23-79 d.C). Sua terminologia descritiva se valeu do grego,sua principal fonte de termos (com base em Teofrastoe Aristóteles) e também do latim, para descrever estruturas botânicas.

O primeiro a reconhecer as diferenças entre as monocotiledôneas e as dicotiledôneas, foi um bispo, de Ratisbon, Albertus Magnus (1193-1280), com base na estrutura do caule. Ele aceitou a classificação de Theophrastus em outros pontos.

Um dos primeiros herbalistas que descreveram e ilustraram plantas conhecidas em sua época, foi Otto Brunfels (1464-1534). Tais herbalistas estavam interessados nas propriedades medicinais das plantas e deram grande contribuição à propagação da fase descritiva da sistemática. Sua obra (Herbarium), foi publicada em Estrasburgo e tornou-se uma base importante para o estudo científico das plantas, apresentando descrições e ilustrações de plantas, bem como um princípio de terminologia científica.

Andrea Caesalpino (1519-1603), foi um médico e botânico italiano, conhecido como o primeiro taxonomista vegetal devido ao seu trabalho De Plantis. Era seguidor das ideias de Aristóteles e a teleologia (a ideia de uma finalidade, por assim dizer), era uma forte característica do seu trabalho. Acreditava que as folhas surgiam para proteger as gemas, flores e frutos; negava a existência de sexo nas plantas. Suas classificações eram baseadas primeiramente quanto aos hábitos e quanto aos frutos e sementes. Reconheceu posteriormente e usou as características de posição do ovário e do número de lóculos entre outras características importantes.

Um dos maiores estudos desta mesma época, foi o Historia Plantarum Universales, uma publicação póstuma em três volumes, de Jean Bauhin (1541-1631), primeiro botânico a distinguir as categorias de gênero e espécie (ao todo, a obra incluía 5000 espécies de plantas tratadas e em 1623, seu irmão Gaspar Bauhin publicou Pinax, com nomes e sinônimos de aproximadamente 6000 espécies). Em muitas de suas classificações, deu um epíteto genérico e específico e, consequentemente, a nomenclatura binária, frequentemente creditada a Lineu, já havia sido usada por J. Bauhin mais de um século antes.

O naturalista e filósofo inglês John Ray (1628-1705), foi o primeiro a reconhecer a importância do embrião e da presença de um ou dois cotilédones para a sistemática.

Joseph Pitton de Tournefort (1656-1708) foi o primeiro a dar uma definição à categoria de gênero, dando a esta categoria taxonômica um status diferente do de espécie. Muitos dos nomes de gêneros por ele criados são usados ainda hoje, como Salix, Populus, Fagus, Betula, Lathyrus, Acer e Verbena. Tournefort ainda desenvolveu um sistema de classificação artificial baseado na forma das corolas (conjunto de pétalas da flor).

Carl von Linné, o famoso Lineu, ou ainda Carolus Linnaeus (1707-1778), sueco. O mais importante dos sistematas, que lançou as bases para o nosso sistema atual de classificação dos seres vivos, especialmente pelo seu Sistema Naturae, obra em que classificava também os minerais. Muitas são as espécies de animais e plantas de diferentes regiões, inclusive aqui no Brasil, que foram descritas por ele. Uma outra obra de grande importância foi Species Plantarum, um marco inicial da classificação binominal e de grande importância para a sistemática de plantas vasculares.

Em seu sistema de classificação, com base no número de estames e sua disposição na flor, Lineu distinguiu 24 classes. Nesse sistema, chamado de Sistema Sexual, por basear-se em características do gineceu e androceu, as classes foram subdivididas em ordens com base no número de estiletes do ovário. A vasta obra de Lineu inclui também: Hortus Uplandicus, publicado em 1730 (com lista de nomes de plantas do Jardim Botânico de Upsala) baseado no sistema de classificação de Tournefort em sua primeira edição e no sistema de sua própria autoria (Sistema Sexual) na segunda, publicada com o aumento da coleção do referido jardim botânico; Genera Plantarum e Flora Lapponica, quando contratado como médico e botânico por George Clifford e posteriormente Hortus Cliffordiannus, descrevendo espécies temperadas e tropicais da coleção de seu contratante. 



            PARTE II

Sistemas Naturais


As numerosas viagens que ocorreram no século XVIII, forneceram aos grandes centros de estudos da Europa um grande número de espécies oriundas de diversos continentes. Eram amostras diversas (sementes, plantas vivas, coleções herborizadas) e muitas das espécies eram completamente novas para a ciência.

Não tardou para que se concluísse, não apenas por teoria e lógica, mas pela comparação e interpretação da flora existente ao redor do mundo no que se refere à organografia e funções, que a afinidade natural entre as plantas ia além do que havia sido previsto pelo Sistema Sexual de Lineu e, a partir dessa fase, entramos no período da história da sistemática caracterizado pelos sistemas naturais. Neles, as plantas eram organizadas em grupos afins pela existência de características comuns; como as teorias sobre a evolução ainda não eram conhecidas, o conceito de afinidade ainda não era claro.

O botânico francês Michel Adanson (1727-1806), passou seis anos no Senegal a estudar geografia, o clima e a história natural da região, publicando seus resultados no trabalho Histoire Naturelle Du Senegal. Sua maior contribuição para a sistemática foi a substituição de todas as classificações artificiais pelo sistema natural e a descrição de táxons, em certa medida, correspondentes às atuais ordens e classes no seu trabalho Families des Plantes, em dois volumes. Com exceção de Anderson e De Candolle, os botânicos antigos designavam como Classis a categoria atualmente conhecida como ordem e como Ordo a que atualmente se chama família (e isso prevaleceu até o século XX).

Jean B. A. P. M. de Lamark (1744-1829). No seu famoso “A Origem das Espécies”, o próprio Charles Darwin cita Lamarck como um dos primeiros a despertar na humanidade a discussão sobre se as modificações nos organismos poderiam ser causadas por leis naturais e não por “intervenções milagrosas”. Eminente naturalista, com importantes trabalhos na área da zoologia, contribuiu também para a sistemática dos vegetais reconhecidamente pela sua Flora Françoise.

Antonie de Jussieu (1686-1758), Bernard de Jussieu (1699-1776) e Joseph de Jussieu (1704-1799), irmãos de grande importância na história da sistemática (Antonie sucedeu Tournefort na direção do Jardin des Plantes com seu irmão Bernard como colaborador). Nos jardins de Trianon, em 1759, as plantas foram organizadas –por Bernard de Jussieu- pela primeira vez em um sistema fora do conceito aristotélico de hábito e que também não era tão artificial como o de Lineu, mas semelhante à proposta do mesmo (Fragmenta Methodi Naturales) e ao sistema de Ray (Methodus Plantarum). Bernard dividiu as plantas com flores em Monocotiledôneas e Dicotiledôneas, ressaltando a posição dos ovários, presença/ausência de pétalas e a concrescência das mesmas.

Quando tinha 15 anos de idade, Antonie foi chamado para trabalhar com seu tio Bernard e, 10 anos depois, ele propôs um novo sistema de classificação das plantas que consistia em uma versão melhorada do sistema elaborado por seu tio. Em 1789, publicou Genera Plantarum, dividindo as plantas em 15 classes e cem ordens (tais ordens –que correspondem a famílias no conceito atual- foram conservadas nas classificações modernas).

 Em seu sistema foi que se originaram os termos hipógino (condição de peças florais situadas abaixo do ovário), epígino (peças florais em receptáculo côncavo, concrescido com o ovário: a flor epígina tem ovário ínfero, ou seja, abaixo das pétalas e demais peças florais) e perígino (também chamado de hipanto, trata-se de quando as peças florais, semelhante ao exemplo do perígino, também estão inseridas em um receptáculo côncavo, mas que deixa o ovário livre ou só é concrescido até sua metade), que também existem até hoje. A. de Jussieu foi ainda o fundador do Museu de História Natural de Paris.

De Candole foi um outro sobrenome importante. O primeiro deles a contribuir para o progresso da sistemática vegetal foi  Augustin Pyrame De Candole (1778-1841). Propôs em sua publicação intitulada Theórie Elementaire que a anatomia e não a fisiologia deveria ser a base para a classificação das plantas. Uma grande obra sua foi Prodromus Systematicis Naturales Regni Vegetabilis, sendo os sete primeiros volumes escritos e editados por ele próprio (os dez volumes restantes foram desenvolvidos por especialistas de diversos grupos de plantas e publicados após a sua morte por seu filho Alphonse de Candolle).

O Reino Vegetal foi dividido em foi dividido por Stephen Endlicher (1804-1849) em Talófitos e Cormófitos (seu sistema, que constou no seu Genera Plantarum foi muito adotado na Europa, mas não por ingleses nem por americanos) e em Phanerogamae e Cryptogamae por Adolphe Theodor Brongniart (1801-1884).

George Bentham (1800-1884) e Joseph Hooker (1817-1911) foram dois grandes botânicos (Benthan trabalhou inclusive na administração do Royal Botanic Gardens, Kew), mas o sistema proposto por eles era baseado no de Augustin de Candolle e não apresentava mudanças significativas com relação aos sistemas anteriores para classificação das plantas. A publicação do Genera Plantarum por Benthan e Hooker, que não apresentava um sistema filogenético, coincidiu com a época publicação das teorias da evolução de Darwin; Consta que Hooker tentou reformular sua classificação, mas Benthan, que não concordara de imediato com as ideias de Darwin, o impediu de fazê-lo.

Bem deveria tê-lo feito, pois os trabalhos de Wallace e Darwin mudaram decisivamente a compreensão da biodiversidade. A partir dali, as pesquisas sobre os diferentes grupos de seres vivos passaram cada vez mais a ter como base a evolução das espécies. 




PARTE III

O Começo das Filogenias

Como a evolução por seleção natural inclui a existência de um ancestral comum, essa ancestralidade representa um dos pontos fundamentais das classificações atuais, expressa em termos como parentesco evolutivo, clados, grupos monofiléticos...

As filogenias consistem em classificações dos seres vivos visando a compreensão de sua história evolutiva. O primeiro esboço de uma classificação filogenética para plantas foi proposto por August Wilhelm Eichler (1875) na tentativa de classificá-las de acordo com suas relações evolutivas. Embora diferente, obviamente, das filogenias atuais, já tratava-se de um sistema de classificação baseado no conceito de evolução.

Em 1883, Eichler apresentou um sistema que foi gradativamente substituindo o de A. de Candole, principalmente onde era evidente a influência de Benthan e Hooker. Contribuições: dividiu o reino Vegetal em Phanerogamae e Cryptogamae, tratou separadamente algas e fungos (dividindo aquelas em Cyanophyceae, Chlorophyceae, Phaeophyceae e Rhodophyceae), separou as Briófitas em musgos e hepáticas, separou Pteridophytos em Equisetinae, Lycopodinae e Filicinae e, finalmente, as Phaberogamae em Angiospermae e Gimnospermae.  

Sucederam-se, dali em diante, as classificações baseadas no pensamento evolutivo, algumas a seguir: Adolph Engler (1844-1930), Charles Bessey (1845-1915), John Hutchinson (1884-1972) do Royal Botanical Gardens, Kew; Armem Tahktajan, em 1961; Arthur Cronquist, o qual já trabalhara na sistemática com Zimmerman e Tahktajan, propôs em 1968 um modelo amplamente difundido e de grande didatismo (baseado em presença/ausência de endosperma, composição química, morfologia dos órgãos reprodutores, caracteres anatômicos, etc.); Uma árvore filogenética das angiospermas compreendendo 34 superordens (27 Dicotiledôneas e sete Monocotiledôneas), e 96 ordens é apresentada por Rolf Dahlgren em 1975.


Como são feitas as filogenias?

Agora vamos ver como se faz uma árvore filogenética. Na verdade, não existe um único meio. Também é errado pensarmos que árvores filogenéticas são apenas baseadas em sequências de DNA ou só em dados moleculares, pois uma abordagem assim deixaria de fora importantes aspectos da biologia dos organismos que certamente estariam envolvidos no processo evolutivo. Além disso, seriam também deixados de lado os dados disponíveis na literatura científica. Isto também seria um grave erro, pois a ciência sempre se baseia em obras e conhecimentos já existentes (as famosas referências). Essas análises são feitas com a utilização de softwares capazes de processar muitos dados simultaneamente para testar as hipóteses.

Dentre os sistemas de classificação de angiospermas, Angiosperm Phylogeny Group (APG - 1998, APG II - 2003 e APG III - 2009) é sinônimo do mais completo trabalho de filogenética de angiospermas e certamente uma das árvores filogenéticas (ver APG II) mais importantes já elaboradas. Ao longo do processo, além de dados genéticos (a grande novidade) foram utilizados até mesmo dados do registro fóssil e das síndromes de polinização (caracteres morfológicos, anatômicos e químicos) nas análises. Árvores filogenéticas mais simples, utilizando apenas sequências de DNA, podem ser utilizadas principalmente para objetivos menos abrangentes, como a distinção entre subespécies e espécies do mesmo gênero ou em casos semelhantes.

Um exemplo foi a produção de uma árvore filogenética baseada em sequências de DNA mitocondrial para a coruja-boobook (Ninox novaeseelandiae undulata) da Ilha Norfolk, Nova Zelândia. Após a população ter declinado até um único indivíduo, a saída foi o cruzamento com a subespécie mais próxima do ponto de vista evolutivo. Foi através das diferenças entre as bases do mtDNA que se elaborou uma árvore filogenética e confirmou-se a subespécie correta para realização do cruzamento.


Uma outra forma, é a análise das diferenças entre sequências de um mesmo gene entre espécies diferentes, podendo refletir aspectos do parentesco evolutivo como no cladograma a seguir: 


Uma breve demonstração (uma brincadeira): utilizei sequências do gene Pax6 e, com um software, elaborei um cladograma com base nos dados disponíveis no NCBI. Até que deu certo, reparem a aproximação entre os primatas (outras espécies, não foram colocadas com seus nomes, tive preguiça e deixei as referências como estavam no site). 



Entretanto, quando se trata de estudos evolutivos abrangentes, as árvores filogenéticas devem seguir, tanto quanto possível, uma combinação de diferentes dados, incluindo classificações taxonômicas tradicionais, sequências de nucleotídeos, dados bioquímicos, anatômicos e todos os que se puder combinar. Assim, com um conjunto de dados mais robusto, se pode ter uma melhor aproximação ao conhecimento de como se ramifica a “Grande Árvore da Vida”.


Referências

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II, APG. An update of the Angiosperm Phylogeny Group classification for the orders and families of flowering plants: APG II. Bot J Linn Soc, v. 141, p. 399-436, 2003.

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BARROSO, G. M., PEIXOTO, A. L.; ICHASO, C. L. F.; GUIMARÃES, E. F. & COSTA, C. G. Sistemática de Angiospermas do Brasil. V. 1 Editora UFV 2ª Ed. Universidade Federal de Viçosa, 2002.

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FRANKHAM, R.; BALLOU, J. D.; BRISCOE, D. A. Fundamentos de Genética da Conservação. Ribeirão Preto: Sociedade Brasileira de Genética, 2008.

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SOUZA, V. S. & LORENZI, H. Botânica Sistemática: guia ilustrado para identificação das famílias de Angiospermas da flora brasileira, baseado em APG II. Instituto Plantarum de Estudos da Flora, Nova Odessa, 2008.