segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Reprodução: comunicando o código da vida #Genética Traduzida e Comentada

Um dia, fomos uma única célula. Essa célula, chamada zigoto, se dividiu (chamamos essa divisão de mitose) até se tornar um conjunto maior de células, a mórula (mórula vem do latim; quer dizer ''pequena amora''). Depois, as células dessa pequena amora começaram a se diferenciar e, mesmo tendo tudo começado com o código genético de uma única célula, hoje somos seres humanos, formados cada um, por trilhões de células tão diferentes como as células sem núcleo do sangue e as complexas células nervosas (neurônios). Eis o ''milagre da multiplicação'' -e diferenciação- das células!

DNA (ácido desoxirribonucleico) em três dimensões.
Observe que a dupla-hélice possui um sulco maior
e outro menor.

A replicação do DNA é uma condição necessária à reprodução das células e dos seres vivos de um modo geral, pois como disse Jacques Monod (Prêmio Nobel em 1965) em seu livro “O acaso e a necessidade”, a vida seria um sistema capaz de se perpetuar graças à manutenção da informação de seu código genético. Pensemos em uma célula que vai se dividir em duas (reprodução celular), ela tem que duplicar seu DNA para que cada célula-filha receba um DNA completo; essa produção de uma cópia de uma molécula de DNA a partir de uma molécula já existente é chamada de replicação. Dessa forma, um ser vivo seria caracterizado por possuir um projeto interno que se realiza em suas estruturas (teleonomia), capacidade de realizar tais estruturas por conta própria (resultado de interações morfogenéticas) e o poder de reproduzir-se, transmitindo inalterada sua informação genética.


Esquema simplificado de uma forquilha de replicação: 
local onde as duas fitas complementares do DNA se separam para que cada filamento inicial (em azul) sirva de molde para a formação de um novo filamento (em vermelho). Ao fim da replicação, haverá duas moléculas de DNA, cada uma, formada por um filamento antigo e um novo; daí se diz que a replicação é semiconservativa.
Como a molécula de DNA é uma dupla hélice formada por dois filamentos de nucleotídeos complementares, a replicação consiste em romper as pontes de hidrogênio e que ligam os dois filamentos em um determinado ponto (no caso de organismos procariontes, que possuem DNA circular) ou em vários pontos (no caso de organismos eucariontes, com longos cromossomos filamentares), sendo tais pontos de abertura o local de início da replicação, chamados de origens de replicação e, a partir desses pontos, utilizar cada filamento livre como molde para sintetizar um novo filamento de DNA complementar pela adição de subunidades específicas (nucleotídeos) com base na sequência de bases nitrogenadas da molécula preexistente.


Todo o processo é dirigido pelas enzimas mostradas na tabela abaixo, que abrem a molécula de DNA como um zíper, formam um novo filamento complementar para cada um dos já existentes e corrigem eventuais erros durante todo o processo.


As enzimas envolvidas no processo de replicação e a função de cada uma delas estão no quadro abaixo. Ninguém tem que decorar, é só para os curiosos terem mais coisas para vasculhar.


...E como uma tabela pode ser algo complicado, vamos ver uma ilustração mostrando onde e como agem algumas delas.

Essas são algumas enzimas atuando na cópia do DNA (o primeiro desenho mostra apenas onde estão os novos e os antigos filamentos, o de baixo mostra as enzimas). Repare no desenho inferior que o novo filamento sendo construído pela DNA POLIMERASE (DNA POL), mostrada no canto inferior esquerdo, tem seu início com um componente diferente (representado na cor verde) é o PRIMER, um trecho de RNA que é adicionado para que a DNA POLIMERASE possa iniciar seu trabalho, pois ela só reconhece fitas duplas (mais explicações na tabela acima e no texto).

Mas até onde podemos dizer que estamos corretos ao falar da vida nesses termos? É verdade que a replicação do DNA é um processo chave na manutenção da vida por prover moléculas da herança genética para as gerações futuras. Também é verdade que o DNA molda as características dos indivíduos. Entretanto, se existem tantos estudos e teorias sobre o fenômeno VIDA, poderíamos perguntar:

MAS AFINAL, O QUE É A VIDA? JÁ QUE A CIÊNCIA REVELOU QUE OS SERES VIVOS SÃO COMPOSTOS POR ÁTOMOS, COMO A MATÉRIA INANIMADA (SEM VIDA), COMO DIFERENCIAR O QUE É E O QUE NÃO É VIVO?

Hoje em dia, o conhecimento científico produz clones, prevê as características herdadas pelos seres vivos (inclusive doenças herdadas), transforma os organismos vivos da maneira que lhe é conveniente... Então, devemos esperar que esse conhecimento esteja fundamentado em alguma definição científica do que seria a vida?

De acordo com Andrade & Silva (2003), as ideias sobre o mundo vivo não mudaram muito desde a Idade Média até o Renascimento simplesmente por não haver espaço para a pergunta ''o que é vida?'' na filosofia e na ciência desse período. Será que alguém nunca se perguntou sobre isso? Não é bem assim... O fato é que essa pergunta não tinha um lugar próprio, como tem hoje. A vida não havia despertado uma discussão específica. Segundo estes autores, o universo compreendido na época teria uma só ordem (o vivo era só mais uma manifestação dessa ordem), que deveria ser entendida pela leitura cuidadosa da vontade divina; outra contribuição para tal visão era a arché (origem), como uma tendência dos antigos filósofos gregos compreenderem o universo:

''para Tales (c. 624-545 a.C.), a origem de tudo era a água; para Anaxímenes (morto em torno de 500 a.C.), era o ar. Partindo deles, e passando por sábios como Aristóteles (384-322 a.C.), com seu sistema de causas (material, formal, motriz e final) que explicariam a essência das coisas, chegou-se ao Renascimento ainda com a concepção de que cada corpo do mundo (estrela, pedra, planta, animal) seria sempre o produto de uma combinação específica de matéria e forma.'' (Andrade & Silva, 2003).

Na época clássica (séculos XVII e XVIII), com a explosão da vontade de conhecer dos homens, o mundo vivo passou a ser objeto de investigação. Para se ter uma ideia, foi nessa época que houve avanços como a descoberta da célula (por Robert Hook em 1663), a primeira observação de microrganismos (Antonie van Leuwenhoeke, 1632-1723) e foi também nesse período que a ideia de geração espontânea -abiogênese- (defendida por Aristóteles) recebeu o primeiro grande golpe: o experimento de Francesco Redi (1626-1697), que verificou que não cresciam vermes na carne se ela estivesse dentro de frascos fechados, sem contato com as moscas; foi uma importante evidência de que a ideia que estava certa era a da biogênese. Foi no fim do século XVIII que surgiu o vitalismo, que propunha uma separação necessária entre o vivo e o não vivo.


Entretanto, a compreensão dos seres vivos nessa época era ainda subordinada, em muitos aspectos, às ciências físicas, que eram dominantes na época -tanto é que os vitalistas até utilizavam o termo FORÇA VITAL-, principalmente pela visão mecanicista, herança de Newton muito importante para a física e que pouco contribuiu para o entendimento do fenômeno vida enquanto prenominava.

Mas o século XIX trouxe mais avanços na área, que já se arranjava com seus próprios fundamentos, pois a vida estava sendo intensamente investigada por naturalistas como August de Saint-Hilaire e Alexander von Humboldt, que deram grandes contribuições para o conhecimento da vegetação de diferentes regiões do mundo; Alfred Russel Wallace, que pensou na teoria da evolução por seleção natural ao mesmo tempo que Charles Robert Darwin; Gregor Mendel, considerado o pai da genética;  Louis Pasteur, que derrubou a ideia de geração espontânea aristotélica Mathias Schleiden e Theodor Schwann, alemães que criaram a teoria celular, que afirma que todos os seres vivos são formados por células (essa teoria recebeu a posterior contribuição de Rudolf Virchow). 

Com isso, o século XIX assistiu a um extraordinário avanço na compreensão dos fenômenos do mundo vivo. Esse mundo possuía características próprias, que juntas seriam chamadas de vida. E mais que isso, com a contraposição do vivo ao inanimado e com novos conhecimentos, surgiu uma nova linguagem, novos conceitos, nova metodologia de pesquisa. Em suma, uma nova ciência: a Biologia estava definitivamente consolidada.

Erwin Rudolf Josef Alexander Schrödinger foi um físico austríaco do século XX que teve a minúcia de reconhecer e demonstrar pela própria física que os seres vivos não cabiam nas leis da física, pois enquanto a matéria não viva tende a se desorganizar, a vida existe criando e mantendo a ordem a partir da desordem (um sistema com tendência natural à organização é exatamente o contrário do que estabelece a termodinâmica), imaginem a audácia que foi um físico afirmar isso!



Mas Schrödinger era mesmo fora do comum (não foi por acaso que ele ganhou um Premio Nobel!): como se não bastasse, ele também previu a estrutura da molécula responsável pela herança genética antes de James Watson e Francis Crick revelarem definitivamente a estrutura do DNA em 1953 (Cambrige, Inglaterra). 

O interessante é que se atribui essa tendência que os seres vivos têm à organização, ao código genético, que funciona realizando o ''projeto interno'' dos organismos contra o princípio da entropia (ENTROPIA?) Se você é igual a mim que não entendo nada de física, vamos imaginar: se você não prender a boca de um balão cheio de ar, as moléculas de ar que estavam presas vão naturalmente se espalhar (isso seria a desorganização e, como essas moléculas não voltarão espontaneamente ao estado inicial, o processo é unidirecional e com base nesse princípio se diz que o universo está sempre em uma certa decadência -se dispersando desde o Big Bang). Já uma célula, que é viva, assimila e organiza a matéria que está à sua volta. Ao contrário do ar do balão, que tende a se dispersar. Um exemplo: existem proteínas (formadas com base no código genético, como foi dito no texto anterior!) capazes de concentrar íons (partículas com carga elétrica) no interior das células, produzindo em si a organização da matéria e acúmulo de energia a partir da matéria que se desorganiza ao seu redor.

Canguilhen afirmou ser a vida baseada em uma normatividade, ou seja, um estado habitual de funcionamento desejável, chamado de ''normal'', ou seja aquilo que é como se julga que deva ser, que é mais frequente, que está na média:

''para um ser vivo, o fato de reagir a uma doença, a uma lesão, a uma infestação, a uma anarquia funcional, traduz um fato fundamental: é que a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível (...) a vida é, de fato, uma atividade normativa'' (Canguilhem apud Czeresnia, 2012).

De acordo com Canguilhem, Czeresnia afirma que o ser vivo apresentaria uma posição inconsciente de valor ao exercer o seu mais básico metabolismo como as funções de assimilação e excreção. Ao que pese ter sido Canguilhem tido como um vitalista, foi antes um epistemólogo e traz uma boa visão da teoria atual do conhecimento da vida na forma que apresentamos até agora e um pouco sobre essa história de idas e voltas entre a biologia e a física: 

''Os sistemas vivos abertos, em estado de não equilíbrio, mantém sua organização simultaneamente em virtude de sua abertura ao exterior e apesar de sua abertura. Seja qual for o nome que se lhe atribua, neguentropia, informação ou improbabilidade do sistema, a organização exprime a qualidade de certa quantidade física. Isto basta para distinguir a biologia da física, ainda que a primeira pareça ter ligado seu próprio destino ao da segunda.'' (idem).

Isso é um pequeno resumo da evolução da definição científica do que seria vida durante essas rupturas. A partir do século 20, a pergunta sobre o que seria vida teria lugar e então, a origem da vida passou a ser investigada com uma orientação teórica renovada. E ainda existiam diferentes visões, segundo Andrade & Silva (2003), pois haviam aqueles que encaravam a vida como ''um pacote de predicados'', ou seja um conjunto de características, como um código, visão bastante dominante na genética e uma das principais visões da atualidade (por isso discutimos aqui) e a vida como um operar, mas isso será assunto para o próximo texto. Quando encerraremos (FINALMENTE!!!) a parte explicativa básica da série #Genética Traduzida e Comentada.

1 não entendo muito bem essa antiga língua, mas a biologia me acostumou a admirá-la, e lhes digo, grosso modo, após algumas consultas no meu dicionário de latim, que –morus, significa amoreira e ''ula'' é um diminutivo, como o usado em célula, que quer dizer ''pequena cela'', isso significa ser verdadeira a informação que muitos sites apontam sobre esse significado de mórula).



REFERÊNCIAS:


ANDRADE, L. A. B.; SILVA, E. P. O que é vida? Ciência Hoje, v. 32, n. 191, 2003.

CZERESNIA, D. Categoria Vida: reflexões para uma nova biologia. Fiocruz/Unesp. 2012.

GRIFFITHS, Anthony JF et al. Introdução à genética. Guanabara Koogan, 2008.


HALLIDAY, RESNICK; WALKER, Fundamentos de Física. 8ª edição, vol. 2. LTC, 1996.


KARP, Gerald. Biologia celular e molecular: conceitos e experimentos. Manole, 2005.

MESSIAS Jr., Nazário S. Não foi suficiente ver para crer. Ensaio. Ciência Hoje, vol. 39 • nº 229, p. 58-59.

RAVEN, P. H.; EVERT, R. F.; EICHORN, S. E. Biologia Vegetal. 7a. edição.Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 2007.

SCHRÖDINGER, Erwin. What is life?: With mind and matter and autobiographical sketches. Cambridge University Press, 1992. 

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