sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

O Naturalista: do amador ao cientista.

                                                                                                                       Herbert Araújo


Garça Egretta thulla. Esta foto é uma cortesia de Vinicius Cavalcante, um Jovem e competente naturalista que conheci no curso de Ciências Biológicas.

A ciência é feita com razão e emoção. Esta é a afirmação que cada vez mais se verifica nas discussões epistemológicas recentes, ainda que com alguma resistência. No que se refere às ciências da natureza, a figura do naturalista, apaixonado pelos estudos de campo e pelas estranhas observações e experiências que sempre nos fizeram entender o mundo ao nosso redor, representa mais do que ninguém o entusiasmo como motor do conhecimento. Precisamos de uma sociedade que não chame de louco o homem que observa animais e que não veja como herói o que carrega uma arma.

Especialmente entre o Renascimento e o fim do século XIX (quando estudar a natureza era uma das atividades mais extraordinárias que a sociedade européia conhecia), os naturalistas promoveram grandes mudanças no nosso conhecimento. A Lei da Gravitação Universal, o heliocentrismo e o estudo da evolução das espécies, estão entre as mais revolucionárias heranças que os naturalistas nos deixaram. Além de terem proposto novos métodos para a produção de conhecimento, primordial para o desenvolvimento de uma sociedade.

Há muita confusão acerca do que significa Naturalismo, por duas razões básicas: a primeira, é que esta palavra designa ao mesmo tempo uma escola literária (as Escolas Realistas dividem-se em três estilos: o Realismo, o Naturalismo e o Parnasianismo) e os estudos de fenômenos do mundo natural (berço das ciências da natureza), nosso foco aqui. Popularmente a palavra ainda adquire outros significados, distantes das questões científicas. As Escolas Realistas nas artes - todas sendo uma reação contra o Romantismo – mantêm estreitas relações com a Ciência e Filosofia que se renovavam quando do seu surgimento.

Se você acha que a existência dos naturalistas é coisa de séculos atrás, precisa conhecer as grandes contribuições existentes no pensamento contemporâneo. Do psicólogo Moscovici (defensor do "novo naturalismo", que não se opõe ao culturalismo) a Gerald Durrel, desde os mais voltados à Filosofia até os mais envolvidos com a biodiversidade e biologia da conservação até documentaristas entusiastas e ilustradores, encontraremos grande diversidade (e alguns excêntricos).

O naturalista do qual falamos aqui é um intelectual, mas que não perdeu a sensibilidade de perceber na natureza o real sentido dos nossos conhecimentos. Embora o Renascimento tenha sido importante para a Europa avançar nessa direção, o irresistível impulso da observação sistemática da natureza já se manifestava bem antes, por exemplo, entre os orientais, que no ano de 1054 registraram na China, a explosão de uma estrela na constelação de Touro com tamanha precisão que foi possível encontrar pelo espaço os destroços da explosão com nossos telescópios modernos.

Por isso, um dos pontos mais difíceis na definição de “naturalista” é que ele não se restringe à sociedade européia após o Renascimento, que imortalizou o termo. Ainda bem que ele se torna inconfundível pela paixão de observar a natureza e por sua capacidade de unir diferentes áreas do conhecimento naquilo que chamamos de compreensão do mundo natural.


Naturalistas revolucionários.

Temos que reconhecer, que esse prazer pela observação é o impulso que através dos tempos reaproximou o homem de sua realidade, desenvolveu a agricultura desde o neolítico, fez surgir nossos calendários, melhorou nossas raças e cultivares, nossa saúde, enfim, nos trouxe até aqui. Claro que precisaremos sempre de avanço na política, no direito, na educação e em outras áreas do conhecimento, da nossa cultura (e repensar, criticar a própria Ciência). Mas, tantas espécies foram destruídas por nós e outras tantas ameaçadas, que nossa cultura necessita reencontrar a natureza enquanto há tempo. Isto é sim uma questão cultural.

“Tudo nos incita a pôr termo à visão de uma natureza não humana e de um homem não natural.”

     (Moscovici)

Na atmosfera inquiridora do Renascimento, Leonardo Da Vinci, embora não seja geralmente mencionado como um naturalista, mas principalmente como inventor, artista, etc., escreveu que se poderia inferir a idade de uma árvore a partir dos anéis de crescimento anual do tronco, além de dissecar cadáveres para melhor compreender a anatomia humana. 

Com o racionalismo em alta juntamente com o antropocentrismo, os humanistas cravavam no pensamento da época o distanciamento entre o homem e a natureza, além de serem indiferentes ou hostis perante as ciências naturais, como fazia Francisco Petrarca no século XIV, no advento do Renascimento:

“Mesmo que essas coisas fossem verdadeiras, elas não seriam de nenhum auxílio para nos assegurar uma vida feliz. Pois qual seria a vantagem de conhecer a natureza de animais, pássaros, peixes e répteis, enquanto se permanece ignorante da natureza do homem, sem saber ou se interessando de onde ele veio e para onde vai?”

         Esse também era o modo de pensar de alguns seguidores do São Tomás de Aquino (influente teólogo da Idade Média), leitores de Aristóteles e Platão que não tinham inclinação às ciências naturais (e quando tinham, buscavam harmonizá-las ao cristianismo). Com o pensamento humanista sempre arraigado a tais tradições. Mas para evitar injustiças, vale lembrar que Aristóteles foi um grande observador do mundo natural.

Por outro lado, a retomada dos autores clássicos por tradições divergentes fez surgir o naturalismo renascentista, que valorizava a natureza e buscava nela as explicações para o mundo em suas “próprias” leis. Dentro do naturalismo, estão diferentes visões simpáticas à ciência, como o materialismo e o positivismo da ciência ortodoxa atual, o naturalismo “animista”, que como os vitalistas acreditavam que a natureza possui alma (animistas) ou forças inexplicáveis (força vital, dos vitalistas).

Na astronomia, Nicolau Copérnico (1473-1543) publicou em 1503 o livro De revolutionibus orbium coelestium, o qual propunha a hipótese de que o Sol e não a Terra estava no centro do Universo. O grande avanço desta obra foi que ela demonstrava serem mais precisas as descrições astronômicas quando retirava-se a Terra do centro do Universo.

Ir ao campo ganhava um novo significado. Além da caça, da agricultura e dos passeios, o Velho Mundo passa a conhecer a revolucionária e prazerosa prática de construir novos conhecimentos pela observação da natureza: a História Natural.  

Enquanto a onda de observação da natureza se espalhava pela Europa, surgiam trabalhos como Herbarium (1530), do herbalista Otto Brunfels (1464-1534) e De Plantis, do médico e botânico italiano Andrea Caesalpino (1519-1603) -seguidor de Aristóteles- conhecido como o primeiro taxonomista vegetal e do zoológo e botânico Konrad Gesner (1516-1565), que publicou postumamente em 1561 o trabalho História natural das plantas de Valerius Cordus de Oberhessen (1515-1544). Gesner é conhecido principalmente pela sua grande obra História dos animais, que com suas mais de 4500 páginas foi imediatamente aclamada e séculos depois ainda fascinava o grande Georges Cuvier! O corolário desse período, talvez tenha sido os trabalhos de Francis Bacon (1561-1626), que lançou as bases do método indutivo, uma sistemática de estudos da natureza a partir de dados empíricos.

Para conhecer um pouco mais sobre os avanços no estudo da biodiversidade desde a antiguidade, leia o texto A Grande Árvore da Vida.


Voltando à física e astronomia, a “revolução copernicana” é definitivamente firmada com os trabalhos do alemão Johannes Kepler (1571-1630), que confirmou definitivamente a teoria de Copérnico e do italiano Galileu Galilei (1564-1642), que entre muitas contribuições, introduziu o uso do telescópio na astronomia e uma eficiente metodologia de testes para as leis científicas em condições controladas.

Difícil eleger uma obra em meio a tantos feitos de proporções épicas. Naturalistas revolucionários.

No século XVII, a Biologia recebe duas grandes contribuições: a invenção do microscópio que permitiu a observação dos microrganismos por Antonie van Lewenhoek (1632-1723) a descoberta da célula, publicada em 1665 pelo físico Robert Hooke, no seu livro Micrographia. Na verdade, Hooke acreditava se tratar de canais por onde passava a seiva das plantas. Mas o termo “célula” foi também e melhor empregado por Nehemiah Grew, tratando-as, já em 1682, como vesículas com diferentes formas e tamanhos nas raízes de diferentes plantas. Ele identificou funções como armazenamento de óleos essenciais e ácidos no parênquima do fruto, não mais como meras caixas (Hook chegou a utilizar o termo “boxes” para designá-las). Contribuição semelhante foi dada por seu famoso contemporâneo Malpighi, com quem divide o título de pai da Fisiologia Vegetal e cujas observações foram estendidas a animais.

Desperta um gigante:

Reprodução de uma das edições do
          "Principia", de Newton.
Em 1729, surge a maior e mais importante obra científica do século XVIII: PHILOSOPHIAE NATURALES PRINCIPIA MATHEMATICA, do grande físico e matemático inglês Isaac Newton (1643-1727). Newton desenvolveu um sistema teórico capaz de explicar matematicamente, desde a queda de maçãs, até o movimento dos corpos celestes, passando pela descrição de fenômenos mecânicos como o lançamento oblíquo. Com ele surgiu a Lei da Gravitação Universal, que além de mudar os rumos da astronomia, reinou por quase duzentos anos como a mais completa e abrangente lei da física e até hoje é uma de suas teorias mais importantes (só foi complementada em 1915, pela teoria da relatividade geral, do alemão Einstein). Newton seguia o método cartesiano, baseado na dedução matemática, mas ao contrário de Descartes, ele realizou muitos experimentos e observações aliados às suas deduções.

Um "detalhe" importante: Descartes foi muito importante para a ciência na medida em que contribuiu para nossa forma de análise e dedução. Mas sua contribuição não ficou isenta de efeitos colaterais nocivos. A influência do pensamento cartesiano, como mostram as discussões recentes dentro da filosofia das ciências naturais, mas não só nelas, é um dos grandes empecilhos à busca por um pensamento holístico e sistêmico, além de dificultar a compreensão adequada dos sistemas biológicos em suas propriedades emergentes. Porque propriedades emergentes são praticamente invisíveis a um método que baseia-se na separação do todo em partes.

Com isso, estavam lançadas as bases para o vertiginoso desenvolvimento científico dos séculos XVIII e XIX. O método indutivo (indução, que vai do particular para o geral) foi a base para a elaboração da Teoria Celular, desenvolvida pelo zoólogo Theodor Schwann (1810-1882) e pelo botânico Mathias Schleiden (1804-1881), ambos alemães. Nas ciências da vida, foi uma das teorias mais amplas já desenvolvidas, mas tal avanço não seria ainda o maior, perto do que estava para vir...

Ergue-se outro gigante na Inglaterra:

Ilustração da obra "Origem das Espécies" de
         Charles Robert Darwin.
Em 1859, o já renomado naturalista Charles Darwin publica no "A Origem das Espécies", extenso livro resultante de 20 anos de estudos, a sua teoria da Seleção Natural como mecanismo que impulsiona a evolução das espécies. Esta foi considerada por muitos a maior mudança na compreensão do mundo natural desde que surgiu a ciência moderna, como defende Ernst Mayr entre outros. Darwin chegou às suas conclusões ao mesmo tempo que Alfred R. Wallace, outro naturalista inglês com quem trocou correspondências. A Origem das Espécies trouxe uma densa revisão dos sistemas de classificação, conhecimentos paleontológicos, embrionários e biogeográficos com vários processos ecológicos descritos minuciosamente pelas suas observações ao redor do mundo.

Para ler mais sobre os desdobramentos do pensamento de Darwin, veja a série Dez Argumentos em Defesa da Evolução.

Maior ainda teria sido o avanço se Darwin tivesse tido contato com Gregor Mendel (1822-1884), o monge que, cultivando ervilhas e realizando experiências com elas, desvendou os princípios básicos da hereditariedade. Pena que os trabalhos do monge só foram devidamente reconhecidos após sua morte. Mendel é, com justiça, considerado o pai da Genética.



Os trabalhos de História Natural, de grande importância para o desenvolvimento da Biologia e da Ciência como a conhecemos hoje, floresceram em grande parte dentro da teologia natural, diga-se de passagem, na cosmovisão cristã. Portanto, a teologia natural se baseava geralmente na ideia de que Deus havia criado um mundo perfeito. Se por um lado essa cosmovisão adiou por vários séculos a investigação das nossas origens, por outro, a idéia de um mundo perfeito criado por um ser de sabedoria suprema aguçou a curiosidade pelas “leis” que regiam a natureza. Uma faca de dois gumes: enquanto no Renascimento falava-se em leis próprias da natureza, na teologia natural, tais leis eram criação da inteligência de Deus. Nesse sentido, os trabalhos de Newton não provocaram grandes mudanças.

"Desde Descartes que pensamos contra a natureza, certos de que a nossa missão é dominá-la, subjugá-la, conquistá-la. (...) O humanismo é a filosofia de um homem cuja vida sobrenatural escapa a esse destino (natural)homem que é sujeito num mundo de objetos e soberano num mundo de sujeitos."

                                                                (Morin. Grifo nosso

Além de explicar a grande questão que inquietava os naturalistas da época (como as espécies evoluíam, o que até então era só uma hipótese complicada), Darwin rompe com algumas tradições do pensamento que ainda eram fortes na época, como o essencialismo platônico. Introduzindo o pensamento populacional em substituição ao essencialismo para a compreensão das formas de vida. Assim, fala-se também em “revolução darwiniana”, pois além das mudanças de paradigma (do essencialismo para gradualismo, do fixismo para o evolucionismo), Darwin, mesmo não se interessando em atacar os dogmas do cristianismo, inova também por discutir em uma linguagem estritamente científica, livre do dogmatismo religioso, a existência de leis naturais (no Renascimento, bem como entre os vitalistas, havia muitas crenças e exoterismo misturados ao naturalismo). De quebra, ele nos deu o grande presente de sairmos do isolamento que a cultura ocidental nos impôs. De um certo modo, "voltamos" a pertencer à natureza ao mesmo tempo que avançamos no nosso conhecimento e desenvolvemos nossa cultura.


"esta dualidade antitética homem/animal, cultura/natureza, esbarra contra toda a evidência: é evidente que o homem não é constituído por duas camadas sobrepostas, uma bionatural e outra psicossocial, é evidente que não transpôs nenhuma muralha da China que separasse a sua parte humana da sua parte animal; é evidente que cada homem é uma totalidade biopsicossociológica."
                                                                                                            (Morin)



Palavras finais (sobre um novo começo)

E por que falamos disso? Em parte, porque estamos caminhando para o sexto espasmo global de extinção em massa junto com o aumento do efeito estufa, e em parte, porque todos nós sabemos -ou deveríamos aprender- o quanto é benéfico dedicarmo-nos a aprender sobre os fenômenos naturais entre os quais a nossa vida se inclui. E aos que não são dados ao estudo aprofundado, que tal aprender a respeitar aquilo que você não consegue explicar, nem recriar, caso destrua?

Os intelectuais que tratam do assunto, são muitas vezes incapazes de distinguir entre seleção natural e nazismo. Não sabem distinguir ciência evolutiva de pseudo-ciência? Sabem, mas as ideologias invadem o discurso. O reducionismo metodológico predomina nos modelos de ciência que visam a proteção da natureza. Tanto nas ciências sociais como nas ciências naturais. E temos perdido muito tempo, recursos e biodiversidade com discussões inócuas, porque frequentemente a disseminação das ideologias defendidas por esses autores precede o interesse em entender o que realmente está acontecendo à nossa volta, com a vida da qual somos todos parte.

Se por um lado a ecologia profunda não trouxe uma solução definitiva, tampouco o utilitarismo capitalista, ou o materialismo que se vale do discurso marxista para reduzir a natureza a um mero "recurso" a ser consumido na busca por um desenvolvimento, matéria passiva a ser transformada pelo trabalho humano, jamais serão capazes de defendê-la. Em uma sociedade que distingue o humano do natural, como esperar que a natureza seja matéria-prima para a justiça social e para o desenvolvimento social? Não há uma fronteira nítida, apenas um continuum, entre nós e o resto da natureza.

Da química à ecologia, o conhecimento recente tem mostrado claramente nossa ligação indissociável ao mundo natural. Resta agora encontrarmos o caminho para que o nosso conhecimento fragmentado consolide de vez esse reencontro. Grandes avanços foram dados nessa direção e mantemos acesa a esperança de que, chegará o dia, em que nossa cultura reconhecerá uma questão fundamental: quando lutamos por florestas, estamos cuidando do passado e do futuro da nossa sociedade. Pois aquilo que chamamos de "selvagem" é na verdade a base da nossa cultura, da nossa existência. Nossa vida não é um fenômeno isolado.


Referências:

BAKER, John R. The cell-theory: a restatement, history, and critique. Quarterly Journal of Microscopical Science, v. 3, n. 9, p. 87-108, 1949.

DIEGUES, Antônio Carlos Sant'Ana. Etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. Hucitec, 2000.

DIEGUES, Antonio Carlos Sant'Ana. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 1996.

GIFFONI, L. China: o despertar do dragão – viagem ao milagre econômico chinês. Belo Horizonte: Editora Leitura, 2007

            MORIN, Edgar. O paradigma perdido: a natureza humana. 1973.

            RONAN, Colin A. História Ilustrada da Ciência: Da renascença à revolução científica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, v. 3, p. 23-8, 2001

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