Garça Egretta thulla. Esta foto é uma cortesia de Vinicius Cavalcante, um Jovem e competente naturalista que conheci no curso de Ciências Biológicas. |
A ciência é feita com razão e emoção. Esta é a afirmação que cada vez
mais se verifica nas discussões epistemológicas recentes, ainda que com alguma
resistência. No que se refere às ciências da natureza, a figura do naturalista,
apaixonado pelos estudos de campo e pelas estranhas observações e experiências
que sempre nos fizeram entender o mundo ao nosso redor, representa mais do que
ninguém o entusiasmo como motor do conhecimento. Precisamos de uma sociedade
que não chame de louco o homem que observa animais e que não veja como herói o que carrega uma arma.
Especialmente
entre o Renascimento e o fim do século XIX (quando estudar a natureza era uma das atividades
mais extraordinárias que a sociedade européia conhecia), os naturalistas
promoveram grandes mudanças no nosso conhecimento. A Lei da Gravitação Universal, o heliocentrismo e
o estudo da evolução das espécies, estão entre as mais revolucionárias heranças
que os naturalistas nos deixaram. Além de terem proposto novos métodos para a
produção de conhecimento, primordial para o desenvolvimento de uma sociedade.
Há muita confusão
acerca do que significa Naturalismo, por duas razões básicas: a primeira, é que
esta palavra designa ao mesmo tempo uma escola literária (as Escolas Realistas
dividem-se em três estilos: o Realismo, o Naturalismo e o Parnasianismo) e os
estudos de fenômenos do mundo natural (berço das ciências da natureza), nosso
foco aqui. Popularmente a palavra ainda adquire outros significados, distantes das questões científicas. As Escolas Realistas nas artes - todas sendo uma reação contra o
Romantismo – mantêm estreitas relações com a Ciência e Filosofia que se renovavam quando do seu surgimento.
Se você acha
que a existência dos naturalistas é coisa de séculos atrás, precisa conhecer as
grandes contribuições existentes no pensamento contemporâneo. Do psicólogo Moscovici (defensor do "novo naturalismo", que não se opõe ao culturalismo) a Gerald Durrel, desde os mais voltados à Filosofia até os mais envolvidos com a biodiversidade e biologia da conservação até documentaristas entusiastas e ilustradores, encontraremos grande diversidade (e alguns excêntricos).
O naturalista
do qual falamos aqui é um intelectual, mas que não perdeu a sensibilidade de
perceber na natureza o real sentido dos nossos conhecimentos. Embora o
Renascimento tenha sido importante para a Europa avançar nessa direção, o
irresistível impulso da observação sistemática da natureza já se manifestava
bem antes, por exemplo, entre os orientais, que no ano de 1054 registraram na China, a
explosão de uma estrela na constelação de Touro com tamanha precisão que foi
possível encontrar pelo espaço os destroços da explosão com nossos telescópios
modernos.
Por isso, um
dos pontos mais difíceis na definição de “naturalista” é que ele não se
restringe à sociedade européia após o Renascimento, que imortalizou o termo.
Ainda bem que ele se torna inconfundível pela paixão de observar a natureza e por
sua capacidade de unir diferentes áreas do conhecimento naquilo que chamamos de
compreensão do mundo natural.
Naturalistas revolucionários.
Temos que reconhecer, que esse prazer pela observação é o impulso que através dos tempos reaproximou
o homem de sua realidade, desenvolveu a agricultura desde o neolítico, fez
surgir nossos calendários, melhorou nossas raças e cultivares, nossa saúde, enfim,
nos trouxe até aqui. Claro que precisaremos sempre de avanço na política, no
direito, na educação e em outras áreas do conhecimento, da nossa cultura (e repensar, criticar a própria Ciência).
Mas, tantas espécies foram destruídas por nós e outras tantas ameaçadas, que nossa
cultura necessita reencontrar a natureza enquanto há tempo. Isto é sim uma
questão cultural.
“Tudo nos incita a pôr termo à visão de uma natureza não humana e de um homem não natural.”
(Moscovici)
“Tudo nos incita a pôr termo à visão de uma natureza não humana e de um homem não natural.”
(Moscovici)
Na atmosfera
inquiridora do Renascimento, Leonardo Da Vinci, embora não seja geralmente
mencionado como um naturalista, mas principalmente como inventor, artista,
etc., escreveu que se poderia inferir a idade de uma árvore a partir dos anéis
de crescimento anual do tronco, além de dissecar cadáveres para melhor compreender
a anatomia humana.
Com o
racionalismo em alta juntamente com o antropocentrismo, os humanistas cravavam no pensamento da época o distanciamento entre o homem e
a natureza, além de serem indiferentes ou hostis perante as ciências naturais,
como fazia Francisco Petrarca no século XIV, no advento do Renascimento:
“Mesmo que essas coisas fossem
verdadeiras, elas não seriam de nenhum auxílio para nos assegurar uma vida
feliz. Pois qual seria a vantagem de conhecer a natureza de animais, pássaros,
peixes e répteis, enquanto se permanece ignorante da natureza do homem, sem
saber ou se interessando de onde ele veio e para onde vai?”
Esse também era o modo de pensar de alguns seguidores do São Tomás de
Aquino (influente teólogo da Idade Média), leitores de Aristóteles e Platão que
não tinham inclinação às ciências naturais (e quando tinham, buscavam harmonizá-las
ao cristianismo). Com o pensamento humanista sempre arraigado a tais tradições. Mas para evitar injustiças, vale lembrar que Aristóteles foi um grande observador do mundo natural.
Por outro
lado, a retomada dos autores clássicos por tradições divergentes fez surgir o naturalismo renascentista, que
valorizava a natureza e buscava nela as explicações para o mundo em suas
“próprias” leis. Dentro do naturalismo, estão diferentes visões simpáticas à
ciência, como o materialismo e o positivismo da ciência ortodoxa atual, o
naturalismo “animista”, que como os vitalistas acreditavam que a natureza
possui alma (animistas) ou forças inexplicáveis (força vital, dos vitalistas).
Ir ao campo
ganhava um novo significado. Além da caça, da agricultura e dos passeios, o
Velho Mundo passa a conhecer a revolucionária e prazerosa prática de construir
novos conhecimentos pela observação da natureza: a História Natural.
Enquanto a
onda de observação da natureza se espalhava pela Europa, surgiam trabalhos como
Herbarium (1530), do herbalista Otto
Brunfels (1464-1534) e De Plantis, do
médico e botânico italiano Andrea Caesalpino (1519-1603) -seguidor de
Aristóteles- conhecido como o primeiro taxonomista vegetal e do zoológo e
botânico Konrad Gesner (1516-1565), que publicou postumamente em 1561 o
trabalho História natural das plantas
de Valerius Cordus de Oberhessen (1515-1544). Gesner é conhecido principalmente
pela sua grande obra História dos animais,
que com suas mais de 4500 páginas foi imediatamente aclamada e séculos depois
ainda fascinava o grande Georges Cuvier! O corolário desse período, talvez
tenha sido os trabalhos de Francis Bacon (1561-1626), que lançou as bases do
método indutivo, uma sistemática de estudos da natureza a partir de dados
empíricos.
Para conhecer um pouco mais sobre os avanços no estudo da biodiversidade desde a antiguidade, leia o texto A Grande Árvore da Vida.
Voltando à física
e astronomia, a “revolução copernicana” é definitivamente firmada com os
trabalhos do alemão Johannes Kepler (1571-1630), que confirmou definitivamente
a teoria de Copérnico e do italiano Galileu Galilei (1564-1642), que entre muitas
contribuições, introduziu o uso do telescópio na astronomia e uma eficiente
metodologia de testes para as leis científicas em condições controladas.
Difícil eleger
uma obra em meio a tantos feitos de proporções épicas. Naturalistas revolucionários.
No século
XVII, a Biologia recebe duas grandes contribuições: a invenção do microscópio
que permitiu a observação dos microrganismos por Antonie van Lewenhoek (1632-1723)
a descoberta da célula, publicada em 1665 pelo físico Robert Hooke, no seu
livro Micrographia. Na verdade, Hooke
acreditava se tratar de canais por onde passava a seiva das plantas. Mas o
termo “célula” foi também e melhor empregado por Nehemiah Grew, tratando-as, já
em 1682, como vesículas com diferentes formas e tamanhos nas raízes de
diferentes plantas. Ele identificou funções como armazenamento de óleos
essenciais e ácidos no parênquima do fruto, não mais como meras caixas (Hook
chegou a utilizar o termo “boxes” para designá-las). Contribuição semelhante
foi dada por seu famoso contemporâneo Malpighi, com quem divide o título de pai
da Fisiologia Vegetal e cujas observações foram estendidas a animais.
Desperta um
gigante:
Reprodução de uma das edições do "Principia", de Newton. |
Um "detalhe" importante: Descartes foi muito importante para a ciência na medida em que contribuiu para nossa forma de análise e dedução. Mas sua contribuição não ficou isenta de efeitos colaterais nocivos. A influência do pensamento cartesiano, como mostram as discussões recentes dentro da filosofia das ciências naturais, mas não só nelas, é um dos grandes empecilhos à busca por um pensamento holístico e sistêmico, além de dificultar a compreensão adequada dos sistemas biológicos em suas propriedades emergentes. Porque propriedades emergentes são praticamente invisíveis a um método que baseia-se na separação do todo em partes.
Com isso,
estavam lançadas as bases para o vertiginoso desenvolvimento científico dos
séculos XVIII e XIX. O método indutivo (indução, que vai do particular para o
geral) foi a base para a elaboração da Teoria Celular, desenvolvida pelo
zoólogo Theodor Schwann (1810-1882) e pelo botânico Mathias Schleiden (1804-1881),
ambos alemães. Nas ciências da vida, foi uma das teorias mais amplas já desenvolvidas,
mas tal avanço não seria ainda o maior, perto do que estava para vir...
Ergue-se outro
gigante na Inglaterra:
Ilustração da obra "Origem das Espécies" de Charles Robert Darwin. |
Para ler mais sobre os desdobramentos do pensamento de Darwin, veja a série Dez Argumentos em Defesa da Evolução.
Maior ainda teria sido o avanço se Darwin tivesse tido contato com Gregor Mendel (1822-1884), o monge que, cultivando ervilhas e realizando experiências com elas, desvendou os princípios básicos da hereditariedade. Pena que os trabalhos do monge só foram devidamente reconhecidos após sua morte. Mendel é, com justiça, considerado o pai da Genética.
"Desde Descartes que pensamos contra a natureza, certos de que a nossa missão é dominá-la, subjugá-la, conquistá-la. (...) O humanismo é a filosofia de um homem cuja vida sobrenatural escapa a esse destino (natural): homem que é sujeito num mundo de objetos e soberano num mundo de sujeitos."
(Morin. Grifo nosso)
Maior ainda teria sido o avanço se Darwin tivesse tido contato com Gregor Mendel (1822-1884), o monge que, cultivando ervilhas e realizando experiências com elas, desvendou os princípios básicos da hereditariedade. Pena que os trabalhos do monge só foram devidamente reconhecidos após sua morte. Mendel é, com justiça, considerado o pai da Genética.
Os trabalhos de História Natural, de grande importância para o
desenvolvimento da Biologia e da Ciência como a conhecemos hoje, floresceram em
grande parte dentro da teologia natural, diga-se de passagem, na cosmovisão
cristã. Portanto, a teologia natural se baseava geralmente na ideia de que Deus
havia criado um mundo perfeito. Se por um lado essa cosmovisão adiou por vários
séculos a investigação das nossas origens, por outro, a idéia de um mundo
perfeito criado por um ser de sabedoria suprema aguçou a curiosidade pelas
“leis” que regiam a natureza. Uma faca de dois gumes: enquanto no Renascimento
falava-se em leis próprias da natureza, na teologia natural, tais leis eram
criação da inteligência de Deus. Nesse sentido, os trabalhos de Newton não
provocaram grandes mudanças.
"Desde Descartes que pensamos contra a natureza, certos de que a nossa missão é dominá-la, subjugá-la, conquistá-la. (...) O humanismo é a filosofia de um homem cuja vida sobrenatural escapa a esse destino (natural): homem que é sujeito num mundo de objetos e soberano num mundo de sujeitos."
(Morin. Grifo nosso)
Além de
explicar a grande questão que inquietava os naturalistas da época (como as
espécies evoluíam, o que até então era só uma hipótese complicada), Darwin
rompe com algumas tradições do pensamento que ainda eram fortes na época, como
o essencialismo platônico. Introduzindo o pensamento populacional em
substituição ao essencialismo para a compreensão das formas de vida. Assim,
fala-se também em “revolução darwiniana”, pois além das mudanças de paradigma (do
essencialismo para gradualismo, do fixismo para o evolucionismo), Darwin, mesmo
não se interessando em atacar os dogmas do cristianismo, inova também por
discutir em uma linguagem estritamente científica, livre do dogmatismo religioso, a existência de leis naturais (no Renascimento, bem como entre os vitalistas, havia muitas crenças e exoterismo misturados ao naturalismo). De quebra, ele nos deu o grande presente de sairmos do isolamento que a cultura ocidental nos impôs. De um certo modo, "voltamos" a pertencer à natureza ao mesmo tempo que avançamos no nosso conhecimento e desenvolvemos nossa cultura.
Da química à
ecologia, o conhecimento recente tem mostrado claramente nossa ligação
indissociável ao mundo natural. Resta agora encontrarmos o caminho para que o
nosso conhecimento fragmentado consolide de vez esse reencontro. Grandes
avanços foram dados nessa direção e mantemos acesa a esperança de que, chegará
o dia, em que nossa cultura reconhecerá uma questão fundamental: quando lutamos
por florestas, estamos cuidando do passado e do futuro da nossa sociedade. Pois
aquilo que chamamos de "selvagem" é na verdade a base da nossa
cultura, da nossa existência. Nossa vida não é um fenômeno isolado.
"esta dualidade antitética homem/animal, cultura/natureza, esbarra contra toda a evidência: é evidente que o homem não é constituído por duas camadas sobrepostas, uma bionatural e outra psicossocial, é evidente que não transpôs nenhuma muralha da China que separasse a sua parte humana da sua parte animal; é evidente que cada homem é uma totalidade biopsicossociológica."
(Morin)
Palavras
finais (sobre um novo começo)
E por que falamos
disso? Em parte, porque estamos caminhando para o sexto espasmo global de
extinção em massa junto com o aumento do efeito estufa, e em parte, porque
todos nós sabemos -ou deveríamos aprender- o quanto é benéfico dedicarmo-nos a
aprender sobre os fenômenos naturais entre os quais a nossa vida se inclui. E
aos que não são dados ao estudo aprofundado, que tal aprender a respeitar
aquilo que você não consegue explicar, nem recriar, caso destrua?
Os
intelectuais que tratam do assunto, são muitas vezes incapazes de distinguir
entre seleção natural e nazismo. Não sabem distinguir ciência evolutiva de
pseudo-ciência? Sabem, mas as ideologias invadem o discurso. O reducionismo
metodológico predomina nos modelos de ciência que visam a proteção da natureza.
Tanto nas ciências sociais como nas ciências naturais. E temos perdido muito
tempo, recursos e biodiversidade com discussões inócuas, porque frequentemente
a disseminação das ideologias defendidas por esses autores precede o interesse
em entender o que realmente está acontecendo à nossa volta, com a vida da qual
somos todos parte.
Se por um lado
a ecologia profunda não trouxe uma solução definitiva, tampouco o utilitarismo
capitalista, ou o materialismo que se vale do discurso marxista para reduzir a
natureza a um mero "recurso" a ser consumido na busca por um
desenvolvimento, matéria passiva a ser transformada pelo trabalho humano,
jamais serão capazes de defendê-la. Em uma sociedade que distingue o humano do
natural, como esperar que a natureza seja matéria-prima para a justiça social e
para o desenvolvimento social? Não há uma fronteira nítida, apenas um
continuum, entre nós e o resto da natureza.
Referências:
BAKER, John R. The cell-theory: a restatement, history, and critique. Quarterly Journal of Microscopical Science, v. 3, n. 9, p. 87-108, 1949.
DIEGUES, Antônio Carlos Sant'Ana. Etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. Hucitec, 2000.
DIEGUES, Antonio Carlos Sant'Ana. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 1996.
GIFFONI, L. China: o despertar do dragão – viagem ao milagre econômico chinês. Belo Horizonte: Editora Leitura, 2007
MORIN, Edgar. O paradigma perdido: a natureza humana. 1973.
RONAN, Colin A. História Ilustrada da Ciência: Da renascença à revolução científica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, v. 3, p. 23-8, 2001
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