segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Devir (ou da origem da vida) #Genética Traduzida e comentada



O trecho acima é a primeira estrofe do poema ''Monólogo de Uma Sombra'', do paraibano Augusto dos Anjos. Foi um dos grandes nomes de toda a literatura brasileira, considerado o principal nome do pré-modernismo no Brasil (embora sua poesia desafie qualquer tentativa de classificação estilística). Autor dos poemas considerados entre os mais estranhos, manifestava seu espanto perante os avanços da ciência, que estavam rapidamente transformando a compreensão do corpo e da vida; seu vocabulário carregado de termos cientificistas e a temática da morte e apodrecimento da carne após a morte se confundem com a demolição de valores e sonhos humanos.


    Duas perguntas...

1ª (só para pensar) Se alguém resolvesse tentar lhe convencer de que um robô ou um automóvel é um ser vivo por se mover, gastar energia e combustível, gerar/converter energia a partir de sistemas internos e até mesmo se orientar no espaço, como você convenceria essa pessoa de que eles não são seres vivos sem usar argumentos religiosos?

2ª (agora uma pergunta mais séria) Se as proteínas são formadas com base no código genético dos ácidos nucleicos, mas são as proteínas que produzem novas moléculas de ácidos nucleicos, então, qual seria a molécula que deu o pontapé inicial na vida? 

    As diferentes culturas e religiões influenciam o modo como as pessoas acreditam que a vida veio a existir; de modo semelhante, as diferentes formas que a ciência tentou encontrar para definir o que seria a vida estabeleceram relação com as pesquisas sobre a origem da vida e sobre os conceitos formulados a partir dessas pesquisas.

    Alguns cientistas preferem não tentar definir o que vem a ser a vida. A inexistência de uma definição simples e consensual gera dificuldades epistemológicas tão grandes, que um dos maiores biólogos de todos os tempos, o zoólogo alemão Ernst Mayr,  importante ornitólogo e taxonomista, co-autor da síntese evolutiva moderna (que uniu os conhecimentos da genética moderna com a teoria de evolução por seleção natural, de Charles Darwin) e autor do conceito filogenético de espécie, afirmou que a biologia não pode ser a ciência que estuda a vida, pelo simples fato da vida não ter definição científica e por isso não pode ser objeto de estudo da biologia, que estuda os PROCESSOS VITAIS E OS SERES VIVOS, BEM COMO SUA RELAÇÃO COM O AMBIENTE. 


   Quanto aos que se aventuram a definir a vida, também há os que são cautelosos. Afirmam que o foco deveria ser um conjunto de características que, juntas, caracterizariam um ser vivo, como as capacidades de nascer, realizar metabolismo, crescer, se reproduzir, possuir estruturas ditas essenciais como células e ácidos nucleicos -digamos que para os que pensam assim, o robô da nossa pergunta inicial não pode ser um ser vivo porque não cresce nem se reproduz! Faz sentido.

   A vida definida com base em um código, é o que discutimos no texto anterior e continuaremos nesta postagem, já que a nossa série trata especialmente da genética. É a que está de acordo com as ideias alicerçadas por Erwin Schrödinger, Jacques MonodJames Watson,  Francis Crick entre outros, que se dedicaram e ainda se dedicam à compreensão da hereditariedade e das bases moleculares da vida. Para eles, o nosso robô não é um ser vivo porque não possui um programa genético.

     E há também  uma forma alternativa de compreensão da vida (para quem achava que já viu todos os nomes estranhos da biologia): autopoiese, proposta por Humberto Maturana e Francisco Varela, neurobiólogos chilenos que trazem uma ideia que se aproxima, em certa medida, da visão de Canguilhem, por levar em consideração a atividade do ser vivo na sua relação  com o meio. Esse modelo poderia explicar por que sempre se usou a palavra vida para os mais diversos organismos. 
    De acordo com a proposta de Maturana e Varela, todo ser vivo seria uma unidade autopoiética, ou seja, um sistema que produz, por meio de interações moleculares:

a) os próprios componentes, participantes das contínuas interações e transformações internas ;b) as fronteiras físicas que delimitam os limites da unidade (poderíamos citar a membrana plasmática, que comunica a célula com o meio ao mesmo tempo que caracteriza sua individualidade).

    Assim, foram diversos os caminhos que a ciência percorreu na busca pela origem da vida. Do ponto de vista da biologia molecular, o paradoxo da segunda pergunta vem gerando novas e intrigantes linhas de investigação sobre a origem da vida. Vamos à origem do código...
   
    Considera-se que os primeiros seres vivos capazes de crescer e se reproduzir sozinhos carregavam sua informação genética em moléculas como DNA e RNA. Mas como teria surgido essa complexa organização a partir de compostos químicos mais simples?

    Com a descoberta de que o RNA pode, sem a ajuda de proteínas catalizadoras, produzir cópias de sua molécula, passou-se a pensar que os primeiros seres vivos teriam como molécula hereditária não o DNA, mas sim o RNA, pois ele replicava-se sem proteínas e armazenava informação genética ao mesmo tempo! 

    Em uma publicação da Scientific American (Origin of Life on Earth - Ricardo & Szostak, 2009) é possível ver que a teoria de que o RNA seria a molécula portadora do código genético dos primeiros seres vivos que surgiram no nosso planeta (chamada ''mundo do RNA''), causou grande impacto no meio científico.
   
   Desse modo, um interessante mistério a ser investigado passara a ser COMO o RNA poderia se formar a partir de compostos químicos simples da Terra de mais de 3 bilhoes de anos atrás. O impressionante nessa história é que as pesquisas mostraram muitas possibilidades.

    Os três componentes de um nucleotídeo, a ribose o fosfato e a base nitrogenada podem se formar espontaneamente, embora não exatamente juntos, como ocorre no nucleotídeo para formar ácidos nucleicos como o RNA. Outro fato é que mesmo depois de descoberta a via pela qual se pode formar o açúcar certo (a pentose ribose, que pode ser obtida por uma reação entre componentes de dois e três carbonos) para a formação do RNA, permanece a questão de como se daria o passo seguinte para a formação do nucleotídeo: a união desses componentes.


   Experimentos recentes demonstraram que não há uma única via pela qual se formam bases nitrogenadas. Além disso,  um criativo grupo de pesquisadores da Universidade de Manchester, Inglaterra, liderado por John Sutherland, encontrou uma maneira plausível pela qual podem se formar nucleotídeos ao mesmo tempo que é formada a ribose! Ao invés de formar o fosfato, a ribose e a base nitrogenada para depois uni-las, eles misturaram os elementos iniciais presentes antes das primeiras células vivas com fosfato e por uma via diferente de reações, conseguiram obter nucleotídeos de RNA. 

    Esta via também gerava nucleotídeos ''falhos'' ou ''errados'', mas depois da exposição a raios ultra-violeta (que são emitidos pelo Sol, por exemplo), sobreviviam nucleotídeos ''certos''. Portanto, estes estudos indicaram que primeiro, os seres vivos armazenavam seu código genético em RNA, que era capaz de se replicar sem proteínas, para depois, passarem a se valer das vantagens do DNA, que é bastante semelhante, mas mais estável e complexo.

     O mundo do RNA não é a única alternativa. Como é comum na ciência, o conhecimento sobre a origem da vida  na terra avança com os questionamentos e os debates. Após essa teoria surgiram outras, como a de Stuart Kaufman que a vida tenha se originado de uma complexa e ampla rede de reações; outros, afirmam que, pelo fato de os eventos de formação do nosso planeta e o surgimento da vida estarem separados por um intervalo muito pequeno (apenas alguns milhões de anos), a vida teria sua origem em visitantes do espaço (origem extraterrestre). E assim segue a ciência: com muitos avanços e poucas certezas, na constante evolução do conhecimento.







REFERÊNCIAS:


ANDRADE, L. A. B.; SILVA, E. P. O que é vida? Ciência Hoje, v. 32, n. 191, 2003.

CZERESNIA, D. Categoria Vida: reflexões para uma nova biologia. Fiocruz/Unesp. 2012.

KARP, Gerald. Biologia celular e molecular: conceitos e experimentos. Manole, 2005.

RICARDO, A.; SZOSTAK, J. W. Origin of life on earthScientific American, v. 301, n. 3, p. 54-61, 2009.

SCHRÖDINGER, Erwin. What is life?: With mind and matter and autobiographical sketches. Cambridge University Press, 1992. 

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Reprodução: comunicando o código da vida #Genética Traduzida e Comentada

Um dia, fomos uma única célula. Essa célula, chamada zigoto, se dividiu (chamamos essa divisão de mitose) até se tornar um conjunto maior de células, a mórula (mórula vem do latim; quer dizer ''pequena amora''). Depois, as células dessa pequena amora começaram a se diferenciar e, mesmo tendo tudo começado com o código genético de uma única célula, hoje somos seres humanos, formados cada um, por trilhões de células tão diferentes como as células sem núcleo do sangue e as complexas células nervosas (neurônios). Eis o ''milagre da multiplicação'' -e diferenciação- das células!

DNA (ácido desoxirribonucleico) em três dimensões.
Observe que a dupla-hélice possui um sulco maior
e outro menor.

A replicação do DNA é uma condição necessária à reprodução das células e dos seres vivos de um modo geral, pois como disse Jacques Monod (Prêmio Nobel em 1965) em seu livro “O acaso e a necessidade”, a vida seria um sistema capaz de se perpetuar graças à manutenção da informação de seu código genético. Pensemos em uma célula que vai se dividir em duas (reprodução celular), ela tem que duplicar seu DNA para que cada célula-filha receba um DNA completo; essa produção de uma cópia de uma molécula de DNA a partir de uma molécula já existente é chamada de replicação. Dessa forma, um ser vivo seria caracterizado por possuir um projeto interno que se realiza em suas estruturas (teleonomia), capacidade de realizar tais estruturas por conta própria (resultado de interações morfogenéticas) e o poder de reproduzir-se, transmitindo inalterada sua informação genética.


Esquema simplificado de uma forquilha de replicação: 
local onde as duas fitas complementares do DNA se separam para que cada filamento inicial (em azul) sirva de molde para a formação de um novo filamento (em vermelho). Ao fim da replicação, haverá duas moléculas de DNA, cada uma, formada por um filamento antigo e um novo; daí se diz que a replicação é semiconservativa.
Como a molécula de DNA é uma dupla hélice formada por dois filamentos de nucleotídeos complementares, a replicação consiste em romper as pontes de hidrogênio e que ligam os dois filamentos em um determinado ponto (no caso de organismos procariontes, que possuem DNA circular) ou em vários pontos (no caso de organismos eucariontes, com longos cromossomos filamentares), sendo tais pontos de abertura o local de início da replicação, chamados de origens de replicação e, a partir desses pontos, utilizar cada filamento livre como molde para sintetizar um novo filamento de DNA complementar pela adição de subunidades específicas (nucleotídeos) com base na sequência de bases nitrogenadas da molécula preexistente.


Todo o processo é dirigido pelas enzimas mostradas na tabela abaixo, que abrem a molécula de DNA como um zíper, formam um novo filamento complementar para cada um dos já existentes e corrigem eventuais erros durante todo o processo.


As enzimas envolvidas no processo de replicação e a função de cada uma delas estão no quadro abaixo. Ninguém tem que decorar, é só para os curiosos terem mais coisas para vasculhar.


...E como uma tabela pode ser algo complicado, vamos ver uma ilustração mostrando onde e como agem algumas delas.

Essas são algumas enzimas atuando na cópia do DNA (o primeiro desenho mostra apenas onde estão os novos e os antigos filamentos, o de baixo mostra as enzimas). Repare no desenho inferior que o novo filamento sendo construído pela DNA POLIMERASE (DNA POL), mostrada no canto inferior esquerdo, tem seu início com um componente diferente (representado na cor verde) é o PRIMER, um trecho de RNA que é adicionado para que a DNA POLIMERASE possa iniciar seu trabalho, pois ela só reconhece fitas duplas (mais explicações na tabela acima e no texto).

Mas até onde podemos dizer que estamos corretos ao falar da vida nesses termos? É verdade que a replicação do DNA é um processo chave na manutenção da vida por prover moléculas da herança genética para as gerações futuras. Também é verdade que o DNA molda as características dos indivíduos. Entretanto, se existem tantos estudos e teorias sobre o fenômeno VIDA, poderíamos perguntar:

MAS AFINAL, O QUE É A VIDA? JÁ QUE A CIÊNCIA REVELOU QUE OS SERES VIVOS SÃO COMPOSTOS POR ÁTOMOS, COMO A MATÉRIA INANIMADA (SEM VIDA), COMO DIFERENCIAR O QUE É E O QUE NÃO É VIVO?

Hoje em dia, o conhecimento científico produz clones, prevê as características herdadas pelos seres vivos (inclusive doenças herdadas), transforma os organismos vivos da maneira que lhe é conveniente... Então, devemos esperar que esse conhecimento esteja fundamentado em alguma definição científica do que seria a vida?

De acordo com Andrade & Silva (2003), as ideias sobre o mundo vivo não mudaram muito desde a Idade Média até o Renascimento simplesmente por não haver espaço para a pergunta ''o que é vida?'' na filosofia e na ciência desse período. Será que alguém nunca se perguntou sobre isso? Não é bem assim... O fato é que essa pergunta não tinha um lugar próprio, como tem hoje. A vida não havia despertado uma discussão específica. Segundo estes autores, o universo compreendido na época teria uma só ordem (o vivo era só mais uma manifestação dessa ordem), que deveria ser entendida pela leitura cuidadosa da vontade divina; outra contribuição para tal visão era a arché (origem), como uma tendência dos antigos filósofos gregos compreenderem o universo:

''para Tales (c. 624-545 a.C.), a origem de tudo era a água; para Anaxímenes (morto em torno de 500 a.C.), era o ar. Partindo deles, e passando por sábios como Aristóteles (384-322 a.C.), com seu sistema de causas (material, formal, motriz e final) que explicariam a essência das coisas, chegou-se ao Renascimento ainda com a concepção de que cada corpo do mundo (estrela, pedra, planta, animal) seria sempre o produto de uma combinação específica de matéria e forma.'' (Andrade & Silva, 2003).

Na época clássica (séculos XVII e XVIII), com a explosão da vontade de conhecer dos homens, o mundo vivo passou a ser objeto de investigação. Para se ter uma ideia, foi nessa época que houve avanços como a descoberta da célula (por Robert Hook em 1663), a primeira observação de microrganismos (Antonie van Leuwenhoeke, 1632-1723) e foi também nesse período que a ideia de geração espontânea -abiogênese- (defendida por Aristóteles) recebeu o primeiro grande golpe: o experimento de Francesco Redi (1626-1697), que verificou que não cresciam vermes na carne se ela estivesse dentro de frascos fechados, sem contato com as moscas; foi uma importante evidência de que a ideia que estava certa era a da biogênese. Foi no fim do século XVIII que surgiu o vitalismo, que propunha uma separação necessária entre o vivo e o não vivo.


Entretanto, a compreensão dos seres vivos nessa época era ainda subordinada, em muitos aspectos, às ciências físicas, que eram dominantes na época -tanto é que os vitalistas até utilizavam o termo FORÇA VITAL-, principalmente pela visão mecanicista, herança de Newton muito importante para a física e que pouco contribuiu para o entendimento do fenômeno vida enquanto prenominava.

Mas o século XIX trouxe mais avanços na área, que já se arranjava com seus próprios fundamentos, pois a vida estava sendo intensamente investigada por naturalistas como August de Saint-Hilaire e Alexander von Humboldt, que deram grandes contribuições para o conhecimento da vegetação de diferentes regiões do mundo; Alfred Russel Wallace, que pensou na teoria da evolução por seleção natural ao mesmo tempo que Charles Robert Darwin; Gregor Mendel, considerado o pai da genética;  Louis Pasteur, que derrubou a ideia de geração espontânea aristotélica Mathias Schleiden e Theodor Schwann, alemães que criaram a teoria celular, que afirma que todos os seres vivos são formados por células (essa teoria recebeu a posterior contribuição de Rudolf Virchow). 

Com isso, o século XIX assistiu a um extraordinário avanço na compreensão dos fenômenos do mundo vivo. Esse mundo possuía características próprias, que juntas seriam chamadas de vida. E mais que isso, com a contraposição do vivo ao inanimado e com novos conhecimentos, surgiu uma nova linguagem, novos conceitos, nova metodologia de pesquisa. Em suma, uma nova ciência: a Biologia estava definitivamente consolidada.

Erwin Rudolf Josef Alexander Schrödinger foi um físico austríaco do século XX que teve a minúcia de reconhecer e demonstrar pela própria física que os seres vivos não cabiam nas leis da física, pois enquanto a matéria não viva tende a se desorganizar, a vida existe criando e mantendo a ordem a partir da desordem (um sistema com tendência natural à organização é exatamente o contrário do que estabelece a termodinâmica), imaginem a audácia que foi um físico afirmar isso!



Mas Schrödinger era mesmo fora do comum (não foi por acaso que ele ganhou um Premio Nobel!): como se não bastasse, ele também previu a estrutura da molécula responsável pela herança genética antes de James Watson e Francis Crick revelarem definitivamente a estrutura do DNA em 1953 (Cambrige, Inglaterra). 

O interessante é que se atribui essa tendência que os seres vivos têm à organização, ao código genético, que funciona realizando o ''projeto interno'' dos organismos contra o princípio da entropia (ENTROPIA?) Se você é igual a mim que não entendo nada de física, vamos imaginar: se você não prender a boca de um balão cheio de ar, as moléculas de ar que estavam presas vão naturalmente se espalhar (isso seria a desorganização e, como essas moléculas não voltarão espontaneamente ao estado inicial, o processo é unidirecional e com base nesse princípio se diz que o universo está sempre em uma certa decadência -se dispersando desde o Big Bang). Já uma célula, que é viva, assimila e organiza a matéria que está à sua volta. Ao contrário do ar do balão, que tende a se dispersar. Um exemplo: existem proteínas (formadas com base no código genético, como foi dito no texto anterior!) capazes de concentrar íons (partículas com carga elétrica) no interior das células, produzindo em si a organização da matéria e acúmulo de energia a partir da matéria que se desorganiza ao seu redor.

Canguilhen afirmou ser a vida baseada em uma normatividade, ou seja, um estado habitual de funcionamento desejável, chamado de ''normal'', ou seja aquilo que é como se julga que deva ser, que é mais frequente, que está na média:

''para um ser vivo, o fato de reagir a uma doença, a uma lesão, a uma infestação, a uma anarquia funcional, traduz um fato fundamental: é que a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível (...) a vida é, de fato, uma atividade normativa'' (Canguilhem apud Czeresnia, 2012).

De acordo com Canguilhem, Czeresnia afirma que o ser vivo apresentaria uma posição inconsciente de valor ao exercer o seu mais básico metabolismo como as funções de assimilação e excreção. Ao que pese ter sido Canguilhem tido como um vitalista, foi antes um epistemólogo e traz uma boa visão da teoria atual do conhecimento da vida na forma que apresentamos até agora e um pouco sobre essa história de idas e voltas entre a biologia e a física: 

''Os sistemas vivos abertos, em estado de não equilíbrio, mantém sua organização simultaneamente em virtude de sua abertura ao exterior e apesar de sua abertura. Seja qual for o nome que se lhe atribua, neguentropia, informação ou improbabilidade do sistema, a organização exprime a qualidade de certa quantidade física. Isto basta para distinguir a biologia da física, ainda que a primeira pareça ter ligado seu próprio destino ao da segunda.'' (idem).

Isso é um pequeno resumo da evolução da definição científica do que seria vida durante essas rupturas. A partir do século 20, a pergunta sobre o que seria vida teria lugar e então, a origem da vida passou a ser investigada com uma orientação teórica renovada. E ainda existiam diferentes visões, segundo Andrade & Silva (2003), pois haviam aqueles que encaravam a vida como ''um pacote de predicados'', ou seja um conjunto de características, como um código, visão bastante dominante na genética e uma das principais visões da atualidade (por isso discutimos aqui) e a vida como um operar, mas isso será assunto para o próximo texto. Quando encerraremos (FINALMENTE!!!) a parte explicativa básica da série #Genética Traduzida e Comentada.

1 não entendo muito bem essa antiga língua, mas a biologia me acostumou a admirá-la, e lhes digo, grosso modo, após algumas consultas no meu dicionário de latim, que –morus, significa amoreira e ''ula'' é um diminutivo, como o usado em célula, que quer dizer ''pequena cela'', isso significa ser verdadeira a informação que muitos sites apontam sobre esse significado de mórula).



REFERÊNCIAS:


ANDRADE, L. A. B.; SILVA, E. P. O que é vida? Ciência Hoje, v. 32, n. 191, 2003.

CZERESNIA, D. Categoria Vida: reflexões para uma nova biologia. Fiocruz/Unesp. 2012.

GRIFFITHS, Anthony JF et al. Introdução à genética. Guanabara Koogan, 2008.


HALLIDAY, RESNICK; WALKER, Fundamentos de Física. 8ª edição, vol. 2. LTC, 1996.


KARP, Gerald. Biologia celular e molecular: conceitos e experimentos. Manole, 2005.

MESSIAS Jr., Nazário S. Não foi suficiente ver para crer. Ensaio. Ciência Hoje, vol. 39 • nº 229, p. 58-59.

RAVEN, P. H.; EVERT, R. F.; EICHORN, S. E. Biologia Vegetal. 7a. edição.Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 2007.

SCHRÖDINGER, Erwin. What is life?: With mind and matter and autobiographical sketches. Cambridge University Press, 1992. 

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

O Dogma Central da Biologia Molecular #Genética Traduzida e Comentada

    O Dogma Central da Biologia Molecular é um modelo explicativo simplificado do fluxo de informação genética na célula. Esse modelo explicativo (publicado em 1970 por Francis Crick, que junto com James Watson revelou a estrutura do DNA) é uma simplificação dos processos relativos ao modo como a informação contida no DNA é processada e expressa, que é de grande importância para a Genética, ampla aplicação didática e fácil de entender em termos gerais. É bom começarmos por ele, para facilitar a compreensão dos textos seguintes. Vejamos:
Figura 1 DOGMA CENTRAL DA BIOLOGIA MOLECULAR: o modelo acima representa uma explicação simplificada de como o código genético é mantido e transmitido na célula. A informação contida nos genes (partes do DNA que detêm a informação das características a serem expressas) é codificada na forma de RNA pelo processo de transcrição (em vírus de RNA, ocorre a transcrição reversa, que produz DNA a partir de RNA); uma vez que a fita de RNA é formada, esse RNA pode servir de código para orientar a sequência de aminoácidos que irá caracterizar o tipo de proteína sintetizada (processo de tradução). O ciclo em volta do DNA representa a replicação, quando são sintetizadas cópias de DNA a partir daquele que já existe na célula, o que é fundamental na reprodução. Cada etapa possui enzimas específicas (que ainda serão tratadas) que catalisam cada reação; a tradução ocorre no citoplasma, onde os ribossomos, que percorrem o RNA para organizar os aminoácidos das proteínas com base no código (nos eucariotos -organismos cujas células apresentam núcleo organizado- o RNA é transportado do núcleo ao citoplasma antes de ocorrer a tradução).

Veja todos os textos da série (é só clicar)!

   Como isso é possível? Bem, já que tanto os ácidos nucléicos (DNA e RNA) como as proteínas, são polímeros, ou seja, moléculas formadas por muitas partes, suas características são determinadas pela combinação dessas partes (proteínas são formadas de aminoácidos; DNA e RNA são formados por nucleotídeos1). A sequência de nucleotídeos do DNA determina a sequência de nucleotídeos do RNA, que por sua vez, determina a sequência de aminoácidos das proteínas.

    Como as proteínas são o componente químico mais abundante no nosso organismo, depois da água, e como as enzimas que controlam nosso metabolismo são proteínas que catalisam reações químicas no organismo, as proteínas se relacionam direta ou indiretamente com as características do organismo (pensando dessa forma não fica difícil entender como o DNA molda nossas características: moldando as proteínas). No mais, conforme salientam Griffiths et al. (2008), ''A estrutura dos organismos e seus ativos processos fisiológicos são baseados, na maior parte, em proteínas ''.




    Falar da vida em linguagem molecular implica riscos. Segundo biólogos como Gerald Karp e Ernst Mayr, a Biologia Celular e a Biologia Molecular são reconhecidamente reducionistas2 e, como destaca o brasileiro Nazário de Souza Messias Jr., em seu ensaio publicado na revista Ciência Hoje (volume 39, página 57), a teoria celular é reducionista por trazer a vida para a dimensão da célula. Coloco esse ponto porque muitas vezes fiz críticas a abordagens reducionistas que se mostram inadequadas e continuo pensando que o reducionismo não é muito bom. Entretanto, para partirmos para as demais interfaces da Biologia Molecular, Celular e da Genética, precisamos ter em mente que essas áreas da Biologia atualmente estão assim alicerçadas e é necessário muito cuidado para não fazermos interpretações mirabolantes desta parte do tema. 


   Vejam só: vi um site que fez uma publicação cujo título remete a algo que me inquietou um pouco: DOGMA CENTRAL DA BIOLOGIA! Não me alongarei falando desse site, pois não sei por que razão a definição apareceu assim, mas resolvi mencionar. Afinal é muito visitado e afirmar que existe um dogma central da Biologia é um tanto exagerado, além de um exemplo de reducionismo teórico e constitutivo que considero inadequado (embora algumas pessoas ainda o definam assim), pois a Biologia não se resume à Biologia Molecular.

    Há muitas pesquisas na Ecologia, Botânica, Zoologia... que são realizadas sem tomar esse dogma como base para a abordagem dos conceitos ou para desenvolvimento do método de estudo e até mesmo a Genética surgiu antes dele. A Biologia, enquanto ciência, ou seja, em seus aspectos epistemológicos (pressupostos filosóficos como a visão holista e populacional, princípios experimentais, estrutura teórica básica) já estava alicerçada antes desse dogma, que derrubou sim muitas dúvidas, mas não o ''Pensamento Biológico'' como um todo (além do mais, nem tudo nele é geral: a transcrição reversa ocorre em retrovírus, mas tem uma infinidade de organismos que não a realizam). Mas é assim mesmo, esse  é sempre um ponto de divergência entre os teóricos. 

    Outro ponto importante: os genes por si só não podem ditar a estrutura de um organismo, afinal, o desenvolvimento de um organismo qualquer (sejam árvores, animais, bectérias, fungos...) ocorre utilizando a matéria do ambiente. Se alguma substância necessária estiver indisponível ou escassa, o organismo pode ser afetado em seu tamanho ou coloração, por exemplo. Ora, a capacidade de produzir melanina (pigmento da pele) é uma condição genética, mas depende também da exposição à radiação solar; o crescimento, que depende também da nutrição do indivíduo, é outro exemplo bem simples.

    O mais importante sobre o Dogma Central da Biologia Molecular, é que ele traz a ideia geral (e simplificada!) de como a informação genética é processada nas células e o caminho pelo qual o DNA condiciona as nossas características. É simples: a sequência de nucleotídeos do DNA determina a sequência de nucleotídeos do RNA, que por sua vez, determina a sequência de aminoácidos das proteínas. Nos textos seguintes, vamos discutir como o código genético atua na manutenção da vida (no próximo, falaremos de reprodução e do DNA moldando quem seremos) e porque a Genética e Biologia Molecular vêm trazendo novas perspectivas em temas como câncer, investigação de crimes, proteção de espécies ameaçadas, taxonomia, origem da vida, entre outros.

1 Nucleotídeos (imagem abaixo): são as unidades que compõem os ácidos nucléicos (DNA e RNA). Cada nucleotídeo é formado por um grupo fosfato, uma pentose (carboidrato de 5 carbonos) e uma base nitrogenada. É a sequência e pareamento das bases nitrogenadas que determina o código genético. 
Figura 2 Representação de um nucleotídeo (A) e disposição dos nucleotídeos no DNA (B). O RNA difere do DNA: no RNA, a pentose é a ribose, ao invés de desoxirribose (daí, os nomes, ácido ribonucléico –RNA- e ácido desoxirribonucléico – DNA); a base nitrogenada timina (T) é encontrada no DNA, mas não no RNA, enquanto a uracila (U) ocorre apenas no RNA; ainda, o RNA geralmente é uma fita simples, ao passo que o DNA é formado por dois filamentos torcidos um em volta do outro, formando o modelo de dupla-hélice, sustentada por pontes de hidrogênio entre as bases nitrogenadas dos dois filamentos.
2 Reducionismo

O reducionismo pode se apresentar de diferentes formas, mas caracteriza-se, de um modo geral, pela visão demasiadamente fechada e determinista do conhecimento científico.

-Reducionismo Constitutivo – Considera que a constituição dos organismos é a mesma que a do mundo inorgânico, tentando explicar fenômenos do mundo vivo em nível de átomos e moléculas.

-Reducionismo Teórico – Postula que as teorias e leis formuladas em um campo da ciência podem revelar-se como casos especiais de teorias e leis formuladas em um outro campo da ciência. O principal problema desse reducionismo é que ele confunde processos e conceitos. (para mais detlhes, CLICK AQUI)

REFERÊNCIAS:

GRIFFITHS, Anthony JF et al.. Introdução à genética. Guanabara Koogan, 2008.

KARP, Gerald. Biologia celular e molecular. Editora Manole Ltda, 2005.

MAYR, Ernst. O desenvolvimento do pensamento biológico: diversidade, evolução e herança. Ed. UnB, 1998.

MESSIAS Jr., Nazário S. Não foi suficiente ver para crer. Ensaio. Revista Ciência Hoje, vol. 39 • nº 229, p. 58-59.

RAVEN, P. H.; EVERT, R. F.; EICHORN, S. E. Biologia Vegetal. 7a. edição.Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 2007.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

GENÉTICA TRADUZIDA E COMENTADA

 Os grandes temas da vida devem ser compreendidos por todos nós. Por isso, você encontrará aqui uma explicação genética acessível para cada um  nesses 7 posts. Escolha um de seu interesse e... Boa leitura! 

  TEXTOS:


Reprodução: comunicando o código da vida

Devir (ou da origem da vida) 

DNA e Criminosos

Genética do Câncer 

Contra a Extinção das Espécies

Filogenética