segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Devir (ou da origem da vida) #Genética Traduzida e comentada



O trecho acima é a primeira estrofe do poema ''Monólogo de Uma Sombra'', do paraibano Augusto dos Anjos. Foi um dos grandes nomes de toda a literatura brasileira, considerado o principal nome do pré-modernismo no Brasil (embora sua poesia desafie qualquer tentativa de classificação estilística). Autor dos poemas considerados entre os mais estranhos, manifestava seu espanto perante os avanços da ciência, que estavam rapidamente transformando a compreensão do corpo e da vida; seu vocabulário carregado de termos cientificistas e a temática da morte e apodrecimento da carne após a morte se confundem com a demolição de valores e sonhos humanos.


    Duas perguntas...

1ª (só para pensar) Se alguém resolvesse tentar lhe convencer de que um robô ou um automóvel é um ser vivo por se mover, gastar energia e combustível, gerar/converter energia a partir de sistemas internos e até mesmo se orientar no espaço, como você convenceria essa pessoa de que eles não são seres vivos sem usar argumentos religiosos?

2ª (agora uma pergunta mais séria) Se as proteínas são formadas com base no código genético dos ácidos nucleicos, mas são as proteínas que produzem novas moléculas de ácidos nucleicos, então, qual seria a molécula que deu o pontapé inicial na vida? 

    As diferentes culturas e religiões influenciam o modo como as pessoas acreditam que a vida veio a existir; de modo semelhante, as diferentes formas que a ciência tentou encontrar para definir o que seria a vida estabeleceram relação com as pesquisas sobre a origem da vida e sobre os conceitos formulados a partir dessas pesquisas.

    Alguns cientistas preferem não tentar definir o que vem a ser a vida. A inexistência de uma definição simples e consensual gera dificuldades epistemológicas tão grandes, que um dos maiores biólogos de todos os tempos, o zoólogo alemão Ernst Mayr,  importante ornitólogo e taxonomista, co-autor da síntese evolutiva moderna (que uniu os conhecimentos da genética moderna com a teoria de evolução por seleção natural, de Charles Darwin) e autor do conceito filogenético de espécie, afirmou que a biologia não pode ser a ciência que estuda a vida, pelo simples fato da vida não ter definição científica e por isso não pode ser objeto de estudo da biologia, que estuda os PROCESSOS VITAIS E OS SERES VIVOS, BEM COMO SUA RELAÇÃO COM O AMBIENTE. 


   Quanto aos que se aventuram a definir a vida, também há os que são cautelosos. Afirmam que o foco deveria ser um conjunto de características que, juntas, caracterizariam um ser vivo, como as capacidades de nascer, realizar metabolismo, crescer, se reproduzir, possuir estruturas ditas essenciais como células e ácidos nucleicos -digamos que para os que pensam assim, o robô da nossa pergunta inicial não pode ser um ser vivo porque não cresce nem se reproduz! Faz sentido.

   A vida definida com base em um código, é o que discutimos no texto anterior e continuaremos nesta postagem, já que a nossa série trata especialmente da genética. É a que está de acordo com as ideias alicerçadas por Erwin Schrödinger, Jacques MonodJames Watson,  Francis Crick entre outros, que se dedicaram e ainda se dedicam à compreensão da hereditariedade e das bases moleculares da vida. Para eles, o nosso robô não é um ser vivo porque não possui um programa genético.

     E há também  uma forma alternativa de compreensão da vida (para quem achava que já viu todos os nomes estranhos da biologia): autopoiese, proposta por Humberto Maturana e Francisco Varela, neurobiólogos chilenos que trazem uma ideia que se aproxima, em certa medida, da visão de Canguilhem, por levar em consideração a atividade do ser vivo na sua relação  com o meio. Esse modelo poderia explicar por que sempre se usou a palavra vida para os mais diversos organismos. 
    De acordo com a proposta de Maturana e Varela, todo ser vivo seria uma unidade autopoiética, ou seja, um sistema que produz, por meio de interações moleculares:

a) os próprios componentes, participantes das contínuas interações e transformações internas ;b) as fronteiras físicas que delimitam os limites da unidade (poderíamos citar a membrana plasmática, que comunica a célula com o meio ao mesmo tempo que caracteriza sua individualidade).

    Assim, foram diversos os caminhos que a ciência percorreu na busca pela origem da vida. Do ponto de vista da biologia molecular, o paradoxo da segunda pergunta vem gerando novas e intrigantes linhas de investigação sobre a origem da vida. Vamos à origem do código...
   
    Considera-se que os primeiros seres vivos capazes de crescer e se reproduzir sozinhos carregavam sua informação genética em moléculas como DNA e RNA. Mas como teria surgido essa complexa organização a partir de compostos químicos mais simples?

    Com a descoberta de que o RNA pode, sem a ajuda de proteínas catalizadoras, produzir cópias de sua molécula, passou-se a pensar que os primeiros seres vivos teriam como molécula hereditária não o DNA, mas sim o RNA, pois ele replicava-se sem proteínas e armazenava informação genética ao mesmo tempo! 

    Em uma publicação da Scientific American (Origin of Life on Earth - Ricardo & Szostak, 2009) é possível ver que a teoria de que o RNA seria a molécula portadora do código genético dos primeiros seres vivos que surgiram no nosso planeta (chamada ''mundo do RNA''), causou grande impacto no meio científico.
   
   Desse modo, um interessante mistério a ser investigado passara a ser COMO o RNA poderia se formar a partir de compostos químicos simples da Terra de mais de 3 bilhoes de anos atrás. O impressionante nessa história é que as pesquisas mostraram muitas possibilidades.

    Os três componentes de um nucleotídeo, a ribose o fosfato e a base nitrogenada podem se formar espontaneamente, embora não exatamente juntos, como ocorre no nucleotídeo para formar ácidos nucleicos como o RNA. Outro fato é que mesmo depois de descoberta a via pela qual se pode formar o açúcar certo (a pentose ribose, que pode ser obtida por uma reação entre componentes de dois e três carbonos) para a formação do RNA, permanece a questão de como se daria o passo seguinte para a formação do nucleotídeo: a união desses componentes.


   Experimentos recentes demonstraram que não há uma única via pela qual se formam bases nitrogenadas. Além disso,  um criativo grupo de pesquisadores da Universidade de Manchester, Inglaterra, liderado por John Sutherland, encontrou uma maneira plausível pela qual podem se formar nucleotídeos ao mesmo tempo que é formada a ribose! Ao invés de formar o fosfato, a ribose e a base nitrogenada para depois uni-las, eles misturaram os elementos iniciais presentes antes das primeiras células vivas com fosfato e por uma via diferente de reações, conseguiram obter nucleotídeos de RNA. 

    Esta via também gerava nucleotídeos ''falhos'' ou ''errados'', mas depois da exposição a raios ultra-violeta (que são emitidos pelo Sol, por exemplo), sobreviviam nucleotídeos ''certos''. Portanto, estes estudos indicaram que primeiro, os seres vivos armazenavam seu código genético em RNA, que era capaz de se replicar sem proteínas, para depois, passarem a se valer das vantagens do DNA, que é bastante semelhante, mas mais estável e complexo.

     O mundo do RNA não é a única alternativa. Como é comum na ciência, o conhecimento sobre a origem da vida  na terra avança com os questionamentos e os debates. Após essa teoria surgiram outras, como a de Stuart Kaufman que a vida tenha se originado de uma complexa e ampla rede de reações; outros, afirmam que, pelo fato de os eventos de formação do nosso planeta e o surgimento da vida estarem separados por um intervalo muito pequeno (apenas alguns milhões de anos), a vida teria sua origem em visitantes do espaço (origem extraterrestre). E assim segue a ciência: com muitos avanços e poucas certezas, na constante evolução do conhecimento.







REFERÊNCIAS:


ANDRADE, L. A. B.; SILVA, E. P. O que é vida? Ciência Hoje, v. 32, n. 191, 2003.

CZERESNIA, D. Categoria Vida: reflexões para uma nova biologia. Fiocruz/Unesp. 2012.

KARP, Gerald. Biologia celular e molecular: conceitos e experimentos. Manole, 2005.

RICARDO, A.; SZOSTAK, J. W. Origin of life on earthScientific American, v. 301, n. 3, p. 54-61, 2009.

SCHRÖDINGER, Erwin. What is life?: With mind and matter and autobiographical sketches. Cambridge University Press, 1992. 

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