terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Percepção Ecológica do Meio Rural







       A zona rural, além de possuir relevância econômica dado o fato de participar decisivamente da produção de alimentos e matéria prima, possui uma variedade de espécies (inclusive a nossa) que convivem em estreitas relações. O texto a seguir, se refere à região situada entre os municípios de Lagoa Seca e Matinhas (na Microrregião do Brejo do estado da Paraíba, onde ocorre uma bela vegetação chamada Brejo de Altitude, uma extensão da Mata Atlântica) onde há predomínio da agricultura familiar e ocorre uso freqüente da fauna e flora para diversas finalidades. Longe da pretensão de dar conta de todos os detalhes, trata-se de uma ligeira e parcial descrição da realidade local, complementada por uma reflexão a respeito da falta de atenção para com as potencialidades e problemas da região onde mais se produz laranja no estado da Paraíba  


                      A percepção do ecossistema



Ainda que desprovido da aparência “selvagem” existente nos ambientes menos alterados, o meio rural possui uma biodiversidade característica e rica, da qual nem sempre se toma conhecimento (mas a partir da qual se pode fazer uma ideia dos prejuízos decorrentes de um manejo inadequado). Por vezes, o ambiente rural nem mesmo é tido como um ecossistema a ser protegido, sendo assim degradado até mesmo por aqueles que dele dependem.

           Há que se reconhecer que as terras cultivadas não são destituídas de vida, mas constituem suporte para reprodução e manutenção de uma biota digna de nota –ainda que nem sempre notada- apresentando valores econômicos, recreativos, recursos naturais e que, por sua vez, contribui para as boas condições de solo, do ar, da umidade adequada e todos os diversos serviços ecossistêmicos. As laranjeiras, que abundam nas propriedades rurais localizadas entre os municípios de Lagoa Seca e Matinhas, são um exemplo de como a fauna pode conviver com a produção. Já é sabido que ocorrem diversos insetos, inclusive abelha e outros polinizadores, além de coleópteros, dípteros, lepidópteros e uma grande variedade que, se enumerada, alongaria a lista. A presença das aves também é evidente, de modo que a mais ligeira observação revela a presença de várias espécies: bem-te-vi, sanhaçu, tico-tico, rolinha, golado (coleiro) e papa-capim (sendo que estes dois últimos aparecem no período chuvoso). Um exemplo clássico é o da ave que de tão familiarizada com o meio, recebeu o nome de sabiá-laranjeira (Turdus rufiventris). Nessas plantações, nidificam e se alimentam várias espécies além das supracitadas (que o digam as crianças, que capturam muitos pássaros canoros nas laranjeiras).

            As bananeiras são preferidas pelos sagüis e sanhaçus, de regime alimentar frugívoro, ou insetívoro - neste caso, exercendo importante papel no controle dos insetos (o sabiá também se faz presente), além de outros organismos que preferem lugares frios e sombreados, que ocorrem também sob as árvores frutíferas maiores, em cujas copas pousam espécies mais ariscas, como, a título de exemplo, gaviões e o carcará. Os pica-paus perfurando os galhos indicam a presença de insetos no interior das árvores cultivadas.

            Mesmo no pasto (onde as alterações são mais intensas), há espécies que tiram proveito do ambiente mais aberto: roedores, répteis, plantas heliófilas e outro exemplo de destaque é o anu, cuculídeo que ajuda o gado a se livrar dos parasitos, constituindo assim mais um exemplo típico de adaptação da fauna ao meio produtivo.



Cadeia alimentar em propriedade rural: cobra-verde (Colubridae)
alimentando-se de uma lagartixa comum à sombra de um coqueiro.
            Está por certo que essas propriedades rurais não possuem dimensões suficientes para manter populações significativas de espécies que exigem maior território, decorrendo daí um fato interessante: os diversos ambientes que ocorrem no meio rural estão conectados, formando um ambiente complexo, um conjunto de pastos, plantações, vestígio de vegetação nativa, barragens e, no caso da região em foco, o rio Mamanguape (que com sua beleza, sítio arqueológico e cachoeiras, atrai visitantes periodicamente). Animais que ocorrem nas plantações e pastos fazem incursões nas matas, bem como animais que se abrigam nas matas podem, por vezes, buscar (e buscam) abrigo e alimento nas propriedades rurais, podendo daí decorrer um controle natural de pragas ou uma competição por recursos, dependendo da espécie. Além disso, cágados, anfíbios, algumas aves e insetos (são só alguns exemplos) transitam entre ambientes aquáticos e terrestres. Toda essa dinâmica conecta biodiversidade, áreas cultivadas, recursos e condições do meio abiótico, fazendo do meio rural um rico ecossistema no qual as fronteiras entre o natural e o artificial se confundem (se é que algum dia elas existiram).


A percepção dos problemas

Anu preto (Crotophaga ani), um cuculídeo, em plantação de maracujá. O indivíduo visto na imagem está vigiando os arredores e, caso se aproxime uma possível ameaça, ele avisará aos demais (que estão escondidos na vegetação) com seus pios característicos. Essas aves são conhecidos aliados dos rebanhos bovinos - e consequentemente dos criadores, pois ajudam o gado a livrar-se dos carrapatos alimentando-se deles.


O fato de uma convivência ser necessária não garante que ela seja harmoniosa. Embora as comunidades tradicionais tenham, há muito, convivido com muitas espécies e mesmo as utilizado sem causar sua extinção, a utilização nem sempre ocorre de maneira ótima. Por outro lado, a ocorrência de conflitos em tal relação, não significa necessariamente que eles sejam inerentes a ela.

Visto que na maioria das vezes os produtores rurais não são assalariados, a importância econômica do meio ambiente para essas pessoas se dá basicamente de duas formas: a) O ecossistema constitui a fonte de renda (comercialização). b) O ecossistema, ao prover recursos como alimento, combustível, material de construção e até mesmo remédio, permite que sejam diminuídos os gastos que ocorreriam com a compra de tais recursos (uso direto). Mas muitas vezes, dessa importância não decorre a conservação, mas sim a degradação dos recursos como resultado da exploração desmedida.

            Tal situação pode ser exposta por meio de um exemplo concreto como o da sabiá (agora uma planta: Mimosa caesalniifolia), uma leguminosa. Árvore comum na região, cuja madeira fornece boas estacas para as cercas. Devido à qualidade, as estacas possuem um bom valor no comércio, sendo assim um recurso que pode gerar uso e renda. Além disso, pode ser usada direto na construção das cercas pelos agricultores e criadores que, não precisando comprar estacas, economizam nos gastos com as cercas. A espécie é muito útil e conhecida, no entanto, uma área onde ela ocorre em abundância não é vista como um ambiente a ser conservado para (e por) uma utilização cuidadosa. O que em verdade ocorre é que muitas vezes a vegetação é completamente varrida pela prática das brocas (trabalho tradicional no qual a vegetação é derrubada por completo, aproveita-se –ou não- parte da madeira e ateia-se fogo ao restante, sobrando apenas cinzas e um solo desprotegido das agressões do meio, sobre o qual, a duras penas, deverá crescer um pasto, uma plantação ou uma nova vegetação). Por vezes ocorre um uso mais moderado, com a retirada da madeira ocorrendo gradualmente de acordo com a demanda, mas mesmo nesses casos, há que se fazer mais.

Muitas são as espécies úteis conhecidas pelos habitantes locais, como cabatam, aroeira, cicupira... Mas ainda que apresentem potencial na construção, ornamentação ou mesmo terapêutico, tais espécies não são objeto de cuidado por parte de quem as utiliza (pelo menos na maioria dos casos). À medida que vai diminuindo a vegetação original, recursos da fauna e da flora vão se tornando igualmente escassos. No entanto, não são realizados esforços para manutenção dessas espécies. O consórcio de espécies nativas com produtos agrícolas se faz possível em cercas vivas, sistemas de quebra-vento (que também funciona como defesa natural contra pragas na lavoura ao mesmo tempo em que diversifica a produção) e em uma série de alternativas igualmente viáveis. Mesmo assim, persiste a visão de que o que é “do mato” não deve participar do processo produtivo, daí não se plantar ou proteger espécies nativas, mesmo quando elas são úteis: é só mato; e mato, não se planta.

             É bem verdade que as percepções se dão de modos variados e que é complicado supor quais idéias são razoáveis e quais são meros preconceitos. No entanto, é coerente afirmar que a biodiversidade (bem como os demais recursos naturais) é indispensável à manutenção da humanidade e isso deve ser levado a sério. Também é razoável prever a escassez desses recursos perante exploração excessiva. Em se tratando do espaço rural, essas questões são particularmente importantes por estarmos tratando das regiões onde ocorre a produção de alimentos que vão abastecer os demais setores da sociedade.

Herbert Crisóstomo dos Santos Araújo


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