Proteger a vida e o meio ambiente
parece ser visto como mais uma necessidade “inventada” por mudanças sociais
recentes, como o uso de máquinas que queimam combustíveis fósseis, os processos
de sobre-exploração de recursos naturais para fins industriais e a tão global
cultura do consumo. Enganam-se os que pensam assim. As mudanças sociais e
tecnológicas nos períodos recentes apenas deram uma nova face –mais
utilitarista e antropocêntrica- à proteção do meio ambiente, mas a necessidade
de protegê-lo já existia, só que não era com uma visão tão materialista como a que
predomina hoje.
Antes de todas essas "novidades", a representação simbólica do
mundo natural, como algo sagrado, ou mesmo a visão de determinados ecossistemas
como a casa de entidades espirituais ou a crença na sacralidade de algumas
espécies, despertou nas mais diferentes culturas humanas (passadas e atuais)
a noção de que uma vida saudável inclui a proteção do meio ambiente.
A
Árvore da Serra
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Acima, foto do interior da mata na "Bica" (Parque Zoobotânico) em João Pessoa - PB. Ao lado, um poema onde o místico na natureza complementa o sentimento de ligação entre ela e o homem. |
-
As árvores, meu filho, não têm alma!
Esta
árvore me serve de empecilho…
É
preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para
que eu tenha uma velhice calma!
-
Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não
vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus
pôs almas nos cedros… no junquilho…
Esta
árvore, meu pai, possui minh'alma!…
-
Disse – e ajoelhou-se, numa rogativa:
“Não
mate a árvore, pai, para que eu viva!”
E
quando a árvore, olhando a pátria serra,
Caiu
aos golpes do machado bronco,
O
moço triste se abraçou com o tronco
E
nunca mais se levantou da terra!
(Augusto dos Anjos)
Na verdade, até a concepção moderna dos
parques nacionais criados nos Estados Unidos (o primeiro foi o de Yellowstone,
em 1872) surgiu de uma visão mais ou menos mítica e segundo Antônio Carlos
Diegues (2001), que é uma das principais autoridades em etnoconservação no
Brasil, essa visão tem raízes profundas na ideia de um “paraíso perdido”, um
lugar intocado e intocável pela mão humana, onde não deve haver moradores. Mito
sim, com direito à alusão ao paraíso, retomada de conceitos da escola romântica
e tudo, mas que gera uma contradição perigosa: se não pode haver morador nessas
áreas de proteção ambiental, então estaremos afirmando que somos incapazes de
conviver com a natureza.
Não precisamos cercar florestas e
colocar policiais para vigiá-las, se compreendermos qual o nosso lugar no
mundo: somos parte da natureza (física e espiritualmente). A proteção do meio
ambiente não é necessariamente contrária aos princípios e propósitos humanos e
se você ainda não está convencido, lhe convido a conhecer alguns exemplos de
povos que viram na espiritualidade o caminho para a convivência sustentável com
o meio ambiente.
O Bosque Sagrado de Oxum (Nigéria)
Há florestas e bosques sagrados de
muitas religiões ao redor do mundo e este é um dos exemplos mais interessantes.
Na cidade de Osobogo, capital do estado de Osun, Nigéria, há um bosque de 75
hectares que é protegido pelos moradores da cidade por um motivo especial: é
um bosque sagrado. O bosque sagrado Osun Osobogo, às margens do Rio Osun (Osun
é uma variação do nome Oxum) é considerado a morada do orixá de mesmo nome.
Segundo a crença local (também relacionada com as tradições religiosas
afro-brasileiras) esse orixá está associado com as águas do rio e, atualmente,
o culto à divindade dos nigerianos convive com o rio e a floresta sem destruir
nenhum deles.
O vivo bosque, já foi ameaçado (segundo
as informações do Batuque dos Orixás) pelo Ministério da Agricultura e
Florestas de lá, por ter utilizado no passado suas terras para experimentos
agrícolas e o que não só mantém a floresta, mas também fez com que sua área fosse
aumentada, foi a devoção ao orixá, com o apoio de um movimento de
revitalização. Hoje, o Bosque de Oxum (um lugar muito bonito por sinal) possui
40 santuários e nove pontos de adoração à beira do rio dentro das 75 hectares
de floresta protegida.
Pachamama: a mãe terra dos povos andinos, ganha direitos na constituição
Pachamama é uma divindade que
representa a própria terra para os povos andinos. Talvez seja a crença que mais
se aproxima da nossa necessidade atual de proteger não apenas áreas restritas
nem apenas algumas espécies, mas todo o planeta. Além disso, acreditem, a Terra
vem tendo seus direitos defendidos no novo constitucionalismo da América Latina
graças à cosmovisão indígena de que a natureza, a mãe terra, ou Pacha Mama, é
aquela que dá a vida e o sustento de todos nós e, portanto, defender seus
direitos significa defender todos os seus habitantes.
No entendimento de Ferreira (2013),
trata-se de um desdobramento do novo constitucionalismo na América Latina,
iniciado com as constituições do Brasil (1988), Colômbia (1991) e Venezuela
(1999), que aflora agora com sua característica pluralidade jurídica e
participação popular nas constituições do Equador (2008) e Bolívia (2009). Sem
dúvida, trata-se mesmo de uma grande revolução, onde a natureza, representada
por uma cosmovisão tradicional passa a ser sujeito de direito. Moraes (2013)
afirma ser uma “revolução paradigmática do Direito”, relacionada com a complementaridade
entre os seres e entre natureza e sociedade, não apenas em âmbito local, mas
entre diversas regiões do mundo.
Os mórmons e seu pequeno bosque em Nova York
A pequena floresta na fazenda onde a
família de Joseph Smith viveu em Palmira (Nova York), é um outro exemplo de
proteção ambiental baseado em princípios espirituais. Teria sido em meio à
floresta que ele teve a primeira revelação (Primeira Visão).
Dessa pequena mata, a família
utilizava algumas espécies para seu sustento sem entretanto destruí-la (a
importância para o uso também contava a princípio), mas era também um lugar de
experiência espiritual e foi depois que se tornou um local importante para a fé
dos mórmons, que a floresta ganhou definitivamente sua proteção.
Franciscanos: uma fraternidade universal
Cabe também lembrarmos a graciosa espiritualidade
franciscana. Entre os católicos, São Francisco de Assis (sem grandes obras
filosóficas como as escritas por Santo Agostinho e São Tomás de Aquino) deixou a
maior herança no que se refere à espiritualidade e relacionamento respeitoso desta
com o mundo natural já vivenciada pela Igreja Católica. Sua biografia traz,
assim como a simplicidade do seu modo de vida, a beleza de se reconhecer parte
da natureza como uma ampliação da compreensão de que é justamente na
contemplação da Criação que o louvor a Deus se faz (por isso, louvar as
criaturas é parte do louvou ao Criador e é até hoje uma marca da espiritualidade
franciscana).
A relação entre um dos mais
importantes santos da tradição católica e a natureza era de absoluta intimidade.
Seus biógrafos (contemporâneos ou não) o descrevem como um homem que via a Criação viva em um leproso e aproximava-se calmamente dos
pássaros com o mesmo sentimento de fraternidade.
Jurema: planta sagrada entre os índios Potiguara
O que talvez muita gente não saiba –eu mesmo não
sabia até bem pouco tempo atrás- é que a jurema, leguminosa muito comum no
nordeste brasileiro é uma planta sagrada na cultura indígena, tendo inclusive uso
ritual entre os índios Potiguara. Nas Américas,
de acordo com Carneiro (2004), a transmissão oral iniciática de xamãs ou pajés
preservou o conhecimento de plantas sagradas, conhecimento que atraiu mestiços
e europeus durante séculos, o que permite que hoje tenhamos algum conhecimento sobre elas.
Quando falamos em “jurema”, um nome popular, fica
difícil dizer com certeza qual é a espécie biológica de que estamos falando, por
dois motivos: primeiro porque nome popular de espécies varia de lugar para
lugar e diferentes espécies podem receber o mesmo nome popular e vice-versa,
segundo, porque mesmo os botânicos reconhecem mais de um tipo de “jurema”,
todas pertencentes ao gênero Mimosa L. (a letra L remete a Lineu, pesquisador
que descreveu o gênero), da família botânica Fabaceae (das leguminosas). Este
gênero, de distribuição neotropical, é muito grande, possuindo cerca de 496 táxons
neotropicais; são 40 as espécies nativas do velho mundo (Dourado et al., 2013).
Sabe-se que a jurema -tratada no trabalho de história focando plantas sagradas
na América, de Carneiro (2004) como Mimosa hostilis- possui o alucinógeno N,N-Dimetiltriptamina (ou simplesmente DMT).
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Spermacoce verticilata L. (Rubiaceae), uma planta
muito utilizada pelas rezadeiras nordestinas. |
No Brasil, o sincretismo cultural e religioso,
assim como as crenças populares, tiveram historicamente um papel amplo nas
relações da sociedade com diferentes espécies animais e vegetais partindo das
representações simbólicas das mesmas. Tive a oportunidade de participar de uma
pesquisa sobre uso de plantas em rituais de cura e, o contato com as rezadeiras
(tradição conhecida na Região Nordeste) me deu a oportunidade de conhecer de
perto a bela relação entre espiritualidade, cultura e biodiversidade, que se
somam naquilo que alguns chamam de relações sócio-ambientais.
O reconhecimento do valor que possuem os conhecimentos
populares tradicionais foi o principal caminho que levou biólogos e
ambientalistas a reconhecer que, para além das leis ecológicas (e de mercado)
que orientam o atual discurso sobre proteção ambiental, devemos reconhecer o
significado que o mundo natural tem para os diferentes povos e esta compreensão
tem levado a intensa mudança de paradigma na proteção do meio ambiente em todo o mundo,
configurando-se hoje em um forte campo de pesquisa. Hoje sabemos que o simples
fato de alguns povos verem, na terra onde vivem, o berço de sua cultura,da sua
fé e verem nela a terra dos seus ancestrais, para muitos povos, é suficiente
para que se respeite o meio ambiente. Não é a separação, mas a proximidade com
a natureza, que nos leva a respeitá-la.
“Essas populações foram estimadas pelas Nações Unidas em 300
milhões, sobrevivendo em setenta países e ocupando os mais variados
ecossistemas, como as savanas, florestas e regiões polares. Segundo McNeely
(1993), os povos chamados de "tribais, nativos, tradicionais ou de
culturas minoritárias diferenciadas" que vivem em regiões isoladas, ocupam
cerca de dezenove por cento da superfície terrestre, vivendo em ecossistemas frágeis.
Ora, são em geral esses ecossistemas considerados "naturais" os que
mais freqüentemente são transformados em áreas naturais protegidas, implicando
a expulsão dos moradores. Com essa ação autoritária, em benefício das
populações urbanizadas, o Estado contribui para a perda de grande arsenal de
etnoconhecimento e etnociência, de sistemas engenhosos de manejo de recursos naturais
e da própria diversidade cultural.” (Antônio Carlos Diegues).
Este foi só um pequeno recorte para termos um ideia da pluralidade de formas com que a natureza penetra o imaginário e a espiritualidade dos seres humanos. Ainda teríamos muitos outros exemplos riquíssimos a citar, como algumas crenças orientais e animistas de diferentes regiões e denominações. Mas o foco não foi fazer o levantamento completo, mas uma breve reflexão para podermos repensar nosso relacionamento com o mundo "natural".
"Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro,
Dizendo-me Aqui estou!
(...)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo
E ando com ele a toda hora"
(Alberto Caeiro – heterônimo de Fernando Pessoa)
Referências
CARNEIRO, H. As plantas sagradas na história da América. Varia História, Belo Horizonte, v. 32, p. 102-119, 2004.
DIEGUES, Antonio Carlos Sant'Ana. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 2001.
DOURADO, D.A.O., CONCEIÇÃO, A.S. & SANTOS-SILVA, J. O gênero Mimosa L. (Leguminosae: Mimosoideae) na APA Serra Branca/Raso da Catarina, Bahia, Brasil. Biota Neotrop.13(4): http://www.biotaneotropica.org.br/v13n4/en/abstract?inventory+bn01713042013
FERREIRA, M. A. PACHA MAMA: OS DIREITOS DA NATUREZA EO NOVO CONSTITUCIONALISMO NA AMÉRICA LATINA.Revista de Direito Brasileira, v. 4, n. 3, p. 400-423, 2013.
OLIVEIRA M. G. Constitucionalismo Ecocêntrico na América Latina, o Bem Viver e a Nova Visão das Águas. Revista da Faculdade de Direito, v. 34, n. 1, p. 123-155, 2013.