sábado, 28 de junho de 2014

O Que é Que o Nordeste Tem?



         Dizer que a Região Nordeste é a terra do educador Paulo Freire, dos escritores Ariano Suassuna, Augusto dos Anjos, José Lins do Rêgo e Manuel Bandeira (entre muitos outros grandes...) do artista que pintou a clássica cena do grito da independência (Pedro Américo) e de uma lista infindável de políticos e intelectuais que fizeram história no país e fora dele, já dá uma ideia da riqueza cultural da Região Nordeste, mas falar da MÚSICA nordestina é preciso...


Em postagem anterior que fiz sobre música aqui no Metalink, eu mencionei a erudição da música do Sivuca (para ver, clique aqui), que fez sucesso nos palcos e na imprensa europeia (para não dizer no mundo) e mostrou a maestria com que os nordestinos fazem música, mas falar só em termos eruditos ou técnicos pode descaracterizar a popularidade da música nordestina, que é hoje um dos símbolos mais marcantes da cultura brasileira.



Mesmo não tendo a honra de ter presenciado uma apresentação do Sivuca, ou do Luiz Gonzaga, posso, pelos trabalhos mais famosos, como o de Caetano Veloso, Alceu Valença (que tive a oportunidade de ver em palco, bem como o Geraldo Azevedo, ótimo cantor, compositor e instrumentista) Zé Ramalho, Gilberto Gil, Armandinho, Lenine (ganhador de 2 prêmios “Grammy Latino”, um pelo melhor álbum –Falange Canibal- e outro por melhor canção brasileira  -Martelo Bigorna, em 2009-), Zeca Baleiro (também premiadíssimo), dos roqueiros Raul Seixas, Herbert Vianna e Pitty, e do violonista Canhoto da Paraíba, dizer que a música nordestina é um oceano repleto de pérolas admiráveis e que não precisam ser lapidadas, apenas apreciadas.

Se esta humilde postagem fosse uma lista, seria de um tamanho descomunal devido à quantidade enorme de grandes nomes, então, vamos esquecer um pouco a quantidade e vamos falar dos aspectos qualitativos...

Infelizmente, o Forró, um ritmo característico do nordeste e riquíssimo em estilos e músicos de grande competência, vem sendo invadido por uma mania de fazer um “forró de plástico”, descartável e que combina como em poucos casos toda sorte de termos de baixo nível e apelo pornográfico. No mais, dois ou três acordes, uma ou duas estrofes que digam qualquer coisa antes de um refrão vago; sob influência das “swingueiras” ou de qualquer outro modismo descomprometido com qualidade e que recorre a letras apelativas onde incitações à bebedeira são o principal (e único!) motivo pelo qual essas músicas são ouvidas, é triste ver que a boa música anda mesmo esquecida.

“O pastor virou doleiro, dinheiro virou cultura,
poesia virou salário, vulgaridade, receita.
Deus me livre dessa seita cujo Deus é feio e triste.

Se o belo ainda existe, o belo eu quero procurar.
Outono, verão, inverno, o mundo virou inferno.
Que o diabo pós-moderno, haja fogo pra queimar.” (Zeca Baleiro)

Não apenas entre os mais “fiéis” às raízes, mesmo algumas bandas que tocam um forró com aspectos mais modernos (Mastruz Com Leite, Magníficos... ) temos exemplos de ótimas bandas fazendo musica de primeira qualidade. O problema realmente é que os modismos acabam causando um efeito muito negativo... E que muitos desses artistas que inicialmente faziam uma música melhor, passam a fazer músicas descartáveis para não desaparecerem em meio à banalidade (banalizando-se!).

Em tempos de festas juninas, nosso nordeste resgata o gosto pelo bom modo de se fazer música (isso não deveria acabar no fim de do mês de junho): belas melodias, uma poesia simples, bons arranjos e mesmo nos trios de forró pé-de-serra, onde a formação do conjunto é bem simples, se pode ver a qualidade do que se chama propriamente de forró. Quando entram em cena artistas como Flávio José, Alcymar Monteiro e tantos outros grandes nomes do forró tradicional, nos parece inacreditável que tanta gente esteja fazendo sucesso com porcaria: música boa não falta!

            “Cada um curte o que gosta,
Eu sempre pensei assim.
Só gosto de música boa,
Não gosto de música ruim.” (Amazan)


segunda-feira, 23 de junho de 2014

Uma Aula de Geologia

O local




Pico do Jabre. Um lugar a 1.197 metros de altitude na Serra de Teixeira, município de Matureia, o ponto mais alto do estado da Paraíba. Local onde a pediplanação traçou a linha entre o Planalto da Borborema e as terras baixas do Sertão e deixou um rastro de inselbergs de resistência. Um belo lugar - diga-se de passagem- que merece que deixemos uma breve descrição para os que ainda não conhecem.


O objetivo

Uma aula de Geologia para alunos dos cursos de Ciências Biológicas e Agroecologia da Universidade Estadual da Paraíba, onde se pudesse visualizar diretamente diversos aspectos dos processos e elementos formadores da paisagem, bem como a própria paisagem resultante da história natural da região. Foi perfeitamente cumprido: não só pela tranquilidade e oportunidades de aprendizado, mas também porque poucas aulas nos deixam tão compenetrados quando as desse tipo.

Aula de campo regida pelo professor Ivanildo Costa para estudantes de
Biologia e Agroecologia da UEPB.



Mas primeiro, pernoitar.

A viagem de ônibus de Campina Grande até Matureia (cerca de três horas) foi tranquila, mas nem por isso deixaria de pedir um bom descanso. Não diria que estudantes ansiosos para uma aula de campo e que venham de turmas diferentes sejam prudentes para dormir cedo ao invés de bater papo, mas o lugar era agradável (com uma aparência rústica para dar um toque especial – Casarão do Jabre era o nome do hotel onde ficamos). No interior do casarão também funciona um museu onde coabitam armas arcaicas e peças sacras. 

Entre jogos de futebol na televisão, um jantar e a apresentação de músicos locais, boas conversas entre amigos, professor e alunos... No fim, descansar um pouco para a subida na manhã seguinte - e ela chegou rapidinho!



Acordar cedo nem sempre é a atividade mais atrativa do mundo, mas lá estávamos nós (ainda que uns antes dos outros, claro), prontos para a subida no Pico do Jabre.

Subindo...






Estar animado por sentir a brisa às seis da manhã de um dia frio é algo que só uma boa aventura justifica. Mesmo com a gente caminhando em aclive considerável, os ventos se faziam sentir no começo e no fim da subida (o calor era mais forte a meio caminho andado). E que subida! Uma paisagem a ser lembrada por um bom tempo, onde o nevoeiro disputava com as árvores altas e repletas de epífitas, qual seria a melhor cortina a reservar do nosso olhar a bela surpresa que nos aguardava no topo, após todas aquelas curvas. 



O Pico


O mosaico de mata serrana e afloramentos rochosos avistados dos quase 1.200 m de altitude, com a região sertaneja servindo de plano de fundo, antes de qualquer processo mental mais elaborado, antes de qualquer discussão teórica ou explicação científica, já seria uma perfeita recompensa ao esforço da subida. Mas como se não bastasse, nossa aula de Geologia realizada em campo preencheu de significados aquilo que já era admirável por simples aparência.


Observações

         As regiões mais elevadas, como as serras que encontramos no Planalto da Borborema, geralmente representam lugares relativamente mais úmidos, onde florestas conspícuas podem ser encontradas; elas predominam na Zona da Mata, entre o litoral e a caatinga, mas podemos encontrar formações florestais bem mais no interior, em altitudes geralmente superiores aos 500m. Tais florestas são bastante diversificadas em sua composição e são conhecidas por diferentes denominações como Matas Serranas, Mata Brejeira, Brejos de Altitude. 
Os diplópodes, assim como as briófitas (imagem abaixo), são organismos que ocorrem preferencialmente em ambientes úmidos. Os diplópodes por exigirem uma certa quantidade de umidade no ar para a respiração e evitar a desidratação; já as briófitas, são plantas que não possuem tecidos especializados na condução de água e nutrientes. Ambos foram encontrados com muita frequência no Pico do Jabre, sinalizando a existência de uma umidade considerável no local.

Os tufos verde-escuro sobre este tronco são musgos (Bryophyta). A planta um pouco maior em primeiro plano é uma pteridófita e as manchas esbranquiçadas no tronco são líquens folhosos.
De acordo com Rocha & Agra (2002), a vegetação encontrada no Pico do Jabre é subcaducifólia e mescla elementos florísticos das matas úmidas e caatingas. Andrade-Lima (1981), também observou a relação entre as maiores altitudes e formação de florestas no interior do Nordeste. A rocha aflora em diversos pontos, permitindo que sejam visualizadas a rocha do pico (sienito) e alguns processos e acidentes em sua superfície, permitindo a constatação de alguns fenômenos que se mostram na superfície.
O pequeno círculo claro formado por material diferente da rocha
circundante é um xenólito.

Sulcos na superfície rochosa formados por intemperismo químico.

A descida:



Já disse o grande Fernando Pessoa: "Tudo vale a pena se a alma não é pequena". Não diria que foi exatamente fácil largar o conforto de nossas casas, dedicar o nosso fim de semana e sacrificar horas de sono que são tão preciosas em tempos de estudo, mas fomos sabendo do cansaço, responsabilidades e coragem exigidos para uma experiência como essa. Em contrapartida, o desafio serviu mais para renovar as baterias do que nos desgastar:
não há como voltar sem um gás novo de lá!

Uma vez terminada a aula, ainda tínhamos um longo desafio: a volta para casa, começando pela descida que era igualmente cansativa, embora trazendo para os músculos anteriores da perna a força exigida do gastrocnêmio para a subida. Com um misto de saudade, alegria e uma vontade grande voltar lá em outra oportunidade, voltamos bastante satisfeitos e só um pouquinho cansados.

Professor Ivanildo Costa (de boné azul, ao centro) e estudantes de graduação no Pico do Jabre, sobre o Planalto da Borborema, a 1.197 m de altitude (ao fundo, a região do Sertão Nordestino). 15 de Junho de 2014.


Literatura citada:

ANDRADE-LIMAD. D. E. The caatingas dominium. Rev. Brasil. Bot, v. 4, n. 2, p. 149-163, 1981.

ROCHA, E. A.; AGRA, Maria de Fátima. Flora of the Pico do Jabre, Paraíba, Brazil: Cactaceae juss. Act. Bot. Bras., v. 16, n. 1, p. 15-21, 2002.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

A Vida é Sagrada

                                                                                                                   Herbert C. S. Araújo

Proteger a vida e o meio ambiente parece ser visto como mais uma necessidade “inventada” por mudanças sociais recentes, como o uso de máquinas que queimam combustíveis fósseis, os processos de sobre-exploração de recursos naturais para fins industriais e a tão global cultura do consumo. Enganam-se os que pensam assim. As mudanças sociais e tecnológicas nos períodos recentes apenas deram uma nova face –mais utilitarista e antropocêntrica- à proteção do meio ambiente, mas a necessidade de protegê-lo já existia, só que não era com uma visão tão materialista como a que predomina hoje.

Antes de todas essas "novidades", a representação simbólica do mundo natural, como algo sagrado, ou mesmo a visão de determinados ecossistemas como a casa de entidades espirituais ou a crença na sacralidade de algumas espécies, despertou nas mais diferentes culturas humanas (passadas e atuais) a noção de que uma vida saudável inclui a proteção do meio ambiente.

A Árvore da Serra
Acima, foto do interior da mata na "Bica"
(Parque Zoobotânico) em João Pessoa - PB. Ao
lado, um poema onde o místico na natureza
complementa o sentimento de ligação entre
ela e o homem.

- As árvores, meu filho, não têm alma!
Esta árvore me serve de empecilho…
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

- Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros… no junquilho…
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma!…

- Disse – e ajoelhou-se, numa rogativa:
“Não mate a árvore, pai, para que eu viva!”
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!

                     (Augusto dos Anjos)



Na verdade, até a concepção moderna dos parques nacionais criados nos Estados Unidos (o primeiro foi o de Yellowstone, em 1872) surgiu de uma visão mais ou menos mítica e segundo Antônio Carlos Diegues (2001), que é uma das principais autoridades em etnoconservação no Brasil, essa visão tem raízes profundas na ideia de um “paraíso perdido”, um lugar intocado e intocável pela mão humana, onde não deve haver moradores. Mito sim, com direito à alusão ao paraíso, retomada de conceitos da escola romântica e tudo, mas que gera uma contradição perigosa: se não pode haver morador nessas áreas de proteção ambiental, então estaremos afirmando que somos incapazes de conviver com a natureza.

Não precisamos cercar florestas e colocar policiais para vigiá-las, se compreendermos qual o nosso lugar no mundo: somos parte da natureza (física e espiritualmente). A proteção do meio ambiente não é necessariamente contrária aos princípios e propósitos humanos e se você ainda não está convencido, lhe convido a conhecer alguns exemplos de povos que viram na espiritualidade o caminho para a convivência sustentável com o meio ambiente.


O Bosque Sagrado de Oxum (Nigéria)

Há florestas e bosques sagrados de muitas religiões ao redor do mundo e este é um dos exemplos mais interessantes. Na cidade de Osobogo, capital do estado de Osun, Nigéria, há um bosque de 75 hectares que é protegido pelos moradores da cidade por um motivo especial: é um bosque sagrado. O bosque sagrado Osun Osobogo, às margens do Rio Osun (Osun é uma variação do nome Oxum) é considerado a morada do orixá de mesmo nome. Segundo a crença local (também relacionada com as tradições religiosas afro-brasileiras) esse orixá está associado com as águas do rio e, atualmente, o culto à divindade dos nigerianos convive com o rio e a floresta sem destruir nenhum deles.

O vivo bosque, já foi ameaçado (segundo as informações do Batuque dos Orixás) pelo Ministério da Agricultura e Florestas de lá, por ter utilizado no passado suas terras para experimentos agrícolas e o que não só mantém a floresta, mas também fez com que sua área fosse aumentada, foi a devoção ao orixá, com o apoio de um movimento de revitalização. Hoje, o Bosque de Oxum (um lugar muito bonito por sinal) possui 40 santuários e nove pontos de adoração à beira do rio dentro das 75 hectares de floresta protegida.


Pachamama: a mãe terra dos povos andinos, ganha direitos na constituição

Pachamama é uma divindade que representa a própria terra para os povos andinos. Talvez seja a crença que mais se aproxima da nossa necessidade atual de proteger não apenas áreas restritas nem apenas algumas espécies, mas todo o planeta. Além disso, acreditem, a Terra vem tendo seus direitos defendidos no novo constitucionalismo da América Latina graças à cosmovisão indígena de que a natureza, a mãe terra, ou Pacha Mama, é aquela que dá a vida e o sustento de todos nós e, portanto, defender seus direitos significa defender todos os seus habitantes.


No entendimento de Ferreira (2013), trata-se de um desdobramento do novo constitucionalismo na América Latina, iniciado com as constituições do Brasil (1988), Colômbia (1991) e Venezuela (1999), que aflora agora com sua característica pluralidade jurídica e participação popular nas constituições do Equador (2008) e Bolívia (2009). Sem dúvida, trata-se mesmo de uma grande revolução, onde a natureza, representada por uma cosmovisão tradicional passa a ser sujeito de direito. Moraes (2013) afirma ser uma “revolução paradigmática do Direito”, relacionada com a complementaridade entre os seres e entre natureza e sociedade, não apenas em âmbito local, mas entre diversas regiões do mundo. 


Os mórmons e seu pequeno bosque em Nova York

A pequena floresta na fazenda onde a família de Joseph Smith viveu em Palmira (Nova York), é um outro exemplo de proteção ambiental baseado em princípios espirituais. Teria sido em meio à floresta que ele teve a primeira revelação (Primeira Visão).

Dessa pequena mata, a família utilizava algumas espécies para seu sustento sem entretanto destruí-la (a importância para o uso também contava a princípio), mas era também um lugar de experiência espiritual e foi depois que se tornou um local importante para a fé dos mórmons, que a floresta ganhou definitivamente sua proteção.


Franciscanos: uma fraternidade universal

Cabe também lembrarmos a graciosa espiritualidade franciscana. Entre os católicos, São Francisco de Assis (sem grandes obras filosóficas como as escritas por Santo Agostinho e São Tomás de Aquino) deixou a maior herança no que se refere à espiritualidade e relacionamento respeitoso desta com o mundo natural já vivenciada pela Igreja Católica. Sua biografia traz, assim como a simplicidade do seu modo de vida, a beleza de se reconhecer parte da natureza como uma ampliação da compreensão de que é justamente na contemplação da Criação que o louvor a Deus se faz (por isso, louvar as criaturas é parte do louvou ao Criador e é até hoje uma marca da espiritualidade franciscana).

          A relação entre um dos mais importantes santos da tradição católica e a natureza era de absoluta intimidade. Seus biógrafos (contemporâneos ou não) o descrevem como um homem que via a Criação viva em um leproso e aproximava-se calmamente dos pássaros com o mesmo sentimento de fraternidade.


Jurema: planta sagrada entre os índios Potiguara

O que talvez muita gente não saiba –eu mesmo não sabia até bem pouco tempo atrás- é que a jurema, leguminosa muito comum no nordeste brasileiro é uma planta sagrada na cultura indígena, tendo inclusive uso ritual entre os índios Potiguara.  Nas Américas, de acordo com Carneiro (2004), a transmissão oral iniciática de xamãs ou pajés preservou o conhecimento de plantas sagradas, conhecimento que atraiu mestiços e europeus durante séculos, o que permite que hoje tenhamos algum conhecimento sobre elas.

Quando falamos em “jurema”, um nome popular, fica difícil dizer com certeza qual é a espécie biológica de que estamos falando, por dois motivos: primeiro porque nome popular de espécies varia de lugar para lugar e diferentes espécies podem receber o mesmo nome popular e vice-versa, segundo, porque mesmo os botânicos reconhecem mais de um tipo de “jurema”, todas pertencentes ao gênero Mimosa L. (a letra L remete a Lineu, pesquisador que descreveu o gênero), da família botânica Fabaceae (das leguminosas). Este gênero, de distribuição neotropical, é muito grande, possuindo cerca de 496 táxons neotropicais; são 40 as espécies nativas do velho mundo (Dourado et al., 2013). Sabe-se que a jurema -tratada no trabalho de história focando plantas sagradas na América, de Carneiro (2004) como Mimosa hostilis- possui o alucinógeno N,N-Dimetiltriptamina (ou simplesmente DMT).

Spermacoce verticilata L. (Rubiaceae), uma planta 
muito utilizada pelas rezadeiras nordestinas.
No Brasil, o sincretismo cultural e religioso, assim como as crenças populares, tiveram historicamente um papel amplo nas relações da sociedade com diferentes espécies animais e vegetais partindo das representações simbólicas das mesmas. Tive a oportunidade de participar de uma pesquisa sobre uso de plantas em rituais de cura e, o contato com as rezadeiras (tradição conhecida na Região Nordeste) me deu a oportunidade de conhecer de perto a bela relação entre espiritualidade, cultura e biodiversidade, que se somam naquilo que alguns chamam de relações sócio-ambientais.


O reconhecimento do valor que possuem os conhecimentos populares tradicionais foi o principal caminho que levou biólogos e ambientalistas a reconhecer que, para além das leis ecológicas (e de mercado) que orientam o atual discurso sobre proteção ambiental, devemos reconhecer o significado que o mundo natural tem para os diferentes povos e esta compreensão tem levado a intensa mudança de paradigma na proteção do meio ambiente em todo o mundo, configurando-se hoje em um forte campo de pesquisa. Hoje sabemos que o simples fato de alguns povos verem, na terra onde vivem, o berço de sua cultura,da sua fé e verem nela a terra dos seus ancestrais, para muitos povos, é suficiente para que se respeite o meio ambiente. Não é a separação, mas a proximidade com a natureza, que nos leva a respeitá-la.

         
Essas populações foram estimadas pelas Nações Unidas em 300 milhões, sobrevivendo em setenta países e ocupando os mais variados ecossistemas, como as savanas, florestas e regiões polares. Segundo McNeely (1993), os povos chamados de "tribais, nativos, tradicionais ou de culturas minoritárias diferenciadas" que vivem em regiões isoladas, ocupam cerca de dezenove por cento da superfície terrestre, vivendo em ecossistemas frágeis. Ora, são em geral esses ecossistemas considerados "naturais" os que mais freqüentemente são transformados em áreas naturais protegidas, implicando a expulsão dos moradores. Com essa ação autoritária, em benefício das populações urbanizadas, o Estado contribui para a perda de grande arsenal de etnoconhecimento e etnociência, de sistemas engenhosos de manejo de recursos naturais e da própria diversidade cultural.” (Antônio Carlos Diegues).

         Este foi só um pequeno recorte para termos um ideia da pluralidade de formas com  que a natureza penetra o imaginário e a espiritualidade dos seres humanos. Ainda teríamos muitos outros exemplos riquíssimos a citar, como algumas crenças 
orientais e animistas de diferentes regiões e denominações. Mas o foco não foi fazer o levantamento completo, mas uma breve reflexão para podermos repensar nosso relacionamento com o mundo "natural".




"Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro,
Dizendo-me Aqui estou!
            (...)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),

Obedeço-lhe a viver espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo

E ando com ele a toda hora"
(Alberto Caeiro – heterônimo de Fernando Pessoa)


Percepção Ecológica do Meio Rural

  
Referências

CARNEIRO, H. As plantas sagradas na história da América. Varia História, Belo Horizonte, v. 32, p. 102-119, 2004.

DIEGUES, Antonio Carlos Sant'Ana. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 2001.

DOURADO, D.A.O., CONCEIÇÃO, A.S. & SANTOS-SILVA, J. O gênero Mimosa L. (Leguminosae: Mimosoideae) na APA Serra Branca/Raso da Catarina, Bahia, Brasil. Biota Neotrop.13(4): http://www.biotaneotropica.org.br/v13n4/en/abstract?inventory+bn01713042013

FERREIRA, M. A. PACHA MAMA: OS DIREITOS DA NATUREZA EO NOVO CONSTITUCIONALISMO NA AMÉRICA LATINA.Revista de Direito Brasileira, v. 4, n. 3, p. 400-423, 2013.

OLIVEIRA M. G. Constitucionalismo Ecocêntrico na América Latina, o Bem Viver e a Nova Visão das Águas. Revista da Faculdade de Direito, v. 34, n. 1, p. 123-155, 2013.