sexta-feira, 6 de junho de 2014

A Vida é Sagrada

                                                                                                                   Herbert C. S. Araújo

Proteger a vida e o meio ambiente parece ser visto como mais uma necessidade “inventada” por mudanças sociais recentes, como o uso de máquinas que queimam combustíveis fósseis, os processos de sobre-exploração de recursos naturais para fins industriais e a tão global cultura do consumo. Enganam-se os que pensam assim. As mudanças sociais e tecnológicas nos períodos recentes apenas deram uma nova face –mais utilitarista e antropocêntrica- à proteção do meio ambiente, mas a necessidade de protegê-lo já existia, só que não era com uma visão tão materialista como a que predomina hoje.

Antes de todas essas "novidades", a representação simbólica do mundo natural, como algo sagrado, ou mesmo a visão de determinados ecossistemas como a casa de entidades espirituais ou a crença na sacralidade de algumas espécies, despertou nas mais diferentes culturas humanas (passadas e atuais) a noção de que uma vida saudável inclui a proteção do meio ambiente.

A Árvore da Serra
Acima, foto do interior da mata na "Bica"
(Parque Zoobotânico) em João Pessoa - PB. Ao
lado, um poema onde o místico na natureza
complementa o sentimento de ligação entre
ela e o homem.

- As árvores, meu filho, não têm alma!
Esta árvore me serve de empecilho…
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

- Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros… no junquilho…
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma!…

- Disse – e ajoelhou-se, numa rogativa:
“Não mate a árvore, pai, para que eu viva!”
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!

                     (Augusto dos Anjos)



Na verdade, até a concepção moderna dos parques nacionais criados nos Estados Unidos (o primeiro foi o de Yellowstone, em 1872) surgiu de uma visão mais ou menos mítica e segundo Antônio Carlos Diegues (2001), que é uma das principais autoridades em etnoconservação no Brasil, essa visão tem raízes profundas na ideia de um “paraíso perdido”, um lugar intocado e intocável pela mão humana, onde não deve haver moradores. Mito sim, com direito à alusão ao paraíso, retomada de conceitos da escola romântica e tudo, mas que gera uma contradição perigosa: se não pode haver morador nessas áreas de proteção ambiental, então estaremos afirmando que somos incapazes de conviver com a natureza.

Não precisamos cercar florestas e colocar policiais para vigiá-las, se compreendermos qual o nosso lugar no mundo: somos parte da natureza (física e espiritualmente). A proteção do meio ambiente não é necessariamente contrária aos princípios e propósitos humanos e se você ainda não está convencido, lhe convido a conhecer alguns exemplos de povos que viram na espiritualidade o caminho para a convivência sustentável com o meio ambiente.


O Bosque Sagrado de Oxum (Nigéria)

Há florestas e bosques sagrados de muitas religiões ao redor do mundo e este é um dos exemplos mais interessantes. Na cidade de Osobogo, capital do estado de Osun, Nigéria, há um bosque de 75 hectares que é protegido pelos moradores da cidade por um motivo especial: é um bosque sagrado. O bosque sagrado Osun Osobogo, às margens do Rio Osun (Osun é uma variação do nome Oxum) é considerado a morada do orixá de mesmo nome. Segundo a crença local (também relacionada com as tradições religiosas afro-brasileiras) esse orixá está associado com as águas do rio e, atualmente, o culto à divindade dos nigerianos convive com o rio e a floresta sem destruir nenhum deles.

O vivo bosque, já foi ameaçado (segundo as informações do Batuque dos Orixás) pelo Ministério da Agricultura e Florestas de lá, por ter utilizado no passado suas terras para experimentos agrícolas e o que não só mantém a floresta, mas também fez com que sua área fosse aumentada, foi a devoção ao orixá, com o apoio de um movimento de revitalização. Hoje, o Bosque de Oxum (um lugar muito bonito por sinal) possui 40 santuários e nove pontos de adoração à beira do rio dentro das 75 hectares de floresta protegida.


Pachamama: a mãe terra dos povos andinos, ganha direitos na constituição

Pachamama é uma divindade que representa a própria terra para os povos andinos. Talvez seja a crença que mais se aproxima da nossa necessidade atual de proteger não apenas áreas restritas nem apenas algumas espécies, mas todo o planeta. Além disso, acreditem, a Terra vem tendo seus direitos defendidos no novo constitucionalismo da América Latina graças à cosmovisão indígena de que a natureza, a mãe terra, ou Pacha Mama, é aquela que dá a vida e o sustento de todos nós e, portanto, defender seus direitos significa defender todos os seus habitantes.


No entendimento de Ferreira (2013), trata-se de um desdobramento do novo constitucionalismo na América Latina, iniciado com as constituições do Brasil (1988), Colômbia (1991) e Venezuela (1999), que aflora agora com sua característica pluralidade jurídica e participação popular nas constituições do Equador (2008) e Bolívia (2009). Sem dúvida, trata-se mesmo de uma grande revolução, onde a natureza, representada por uma cosmovisão tradicional passa a ser sujeito de direito. Moraes (2013) afirma ser uma “revolução paradigmática do Direito”, relacionada com a complementaridade entre os seres e entre natureza e sociedade, não apenas em âmbito local, mas entre diversas regiões do mundo. 


Os mórmons e seu pequeno bosque em Nova York

A pequena floresta na fazenda onde a família de Joseph Smith viveu em Palmira (Nova York), é um outro exemplo de proteção ambiental baseado em princípios espirituais. Teria sido em meio à floresta que ele teve a primeira revelação (Primeira Visão).

Dessa pequena mata, a família utilizava algumas espécies para seu sustento sem entretanto destruí-la (a importância para o uso também contava a princípio), mas era também um lugar de experiência espiritual e foi depois que se tornou um local importante para a fé dos mórmons, que a floresta ganhou definitivamente sua proteção.


Franciscanos: uma fraternidade universal

Cabe também lembrarmos a graciosa espiritualidade franciscana. Entre os católicos, São Francisco de Assis (sem grandes obras filosóficas como as escritas por Santo Agostinho e São Tomás de Aquino) deixou a maior herança no que se refere à espiritualidade e relacionamento respeitoso desta com o mundo natural já vivenciada pela Igreja Católica. Sua biografia traz, assim como a simplicidade do seu modo de vida, a beleza de se reconhecer parte da natureza como uma ampliação da compreensão de que é justamente na contemplação da Criação que o louvor a Deus se faz (por isso, louvar as criaturas é parte do louvou ao Criador e é até hoje uma marca da espiritualidade franciscana).

          A relação entre um dos mais importantes santos da tradição católica e a natureza era de absoluta intimidade. Seus biógrafos (contemporâneos ou não) o descrevem como um homem que via a Criação viva em um leproso e aproximava-se calmamente dos pássaros com o mesmo sentimento de fraternidade.


Jurema: planta sagrada entre os índios Potiguara

O que talvez muita gente não saiba –eu mesmo não sabia até bem pouco tempo atrás- é que a jurema, leguminosa muito comum no nordeste brasileiro é uma planta sagrada na cultura indígena, tendo inclusive uso ritual entre os índios Potiguara.  Nas Américas, de acordo com Carneiro (2004), a transmissão oral iniciática de xamãs ou pajés preservou o conhecimento de plantas sagradas, conhecimento que atraiu mestiços e europeus durante séculos, o que permite que hoje tenhamos algum conhecimento sobre elas.

Quando falamos em “jurema”, um nome popular, fica difícil dizer com certeza qual é a espécie biológica de que estamos falando, por dois motivos: primeiro porque nome popular de espécies varia de lugar para lugar e diferentes espécies podem receber o mesmo nome popular e vice-versa, segundo, porque mesmo os botânicos reconhecem mais de um tipo de “jurema”, todas pertencentes ao gênero Mimosa L. (a letra L remete a Lineu, pesquisador que descreveu o gênero), da família botânica Fabaceae (das leguminosas). Este gênero, de distribuição neotropical, é muito grande, possuindo cerca de 496 táxons neotropicais; são 40 as espécies nativas do velho mundo (Dourado et al., 2013). Sabe-se que a jurema -tratada no trabalho de história focando plantas sagradas na América, de Carneiro (2004) como Mimosa hostilis- possui o alucinógeno N,N-Dimetiltriptamina (ou simplesmente DMT).

Spermacoce verticilata L. (Rubiaceae), uma planta 
muito utilizada pelas rezadeiras nordestinas.
No Brasil, o sincretismo cultural e religioso, assim como as crenças populares, tiveram historicamente um papel amplo nas relações da sociedade com diferentes espécies animais e vegetais partindo das representações simbólicas das mesmas. Tive a oportunidade de participar de uma pesquisa sobre uso de plantas em rituais de cura e, o contato com as rezadeiras (tradição conhecida na Região Nordeste) me deu a oportunidade de conhecer de perto a bela relação entre espiritualidade, cultura e biodiversidade, que se somam naquilo que alguns chamam de relações sócio-ambientais.


O reconhecimento do valor que possuem os conhecimentos populares tradicionais foi o principal caminho que levou biólogos e ambientalistas a reconhecer que, para além das leis ecológicas (e de mercado) que orientam o atual discurso sobre proteção ambiental, devemos reconhecer o significado que o mundo natural tem para os diferentes povos e esta compreensão tem levado a intensa mudança de paradigma na proteção do meio ambiente em todo o mundo, configurando-se hoje em um forte campo de pesquisa. Hoje sabemos que o simples fato de alguns povos verem, na terra onde vivem, o berço de sua cultura,da sua fé e verem nela a terra dos seus ancestrais, para muitos povos, é suficiente para que se respeite o meio ambiente. Não é a separação, mas a proximidade com a natureza, que nos leva a respeitá-la.

         
Essas populações foram estimadas pelas Nações Unidas em 300 milhões, sobrevivendo em setenta países e ocupando os mais variados ecossistemas, como as savanas, florestas e regiões polares. Segundo McNeely (1993), os povos chamados de "tribais, nativos, tradicionais ou de culturas minoritárias diferenciadas" que vivem em regiões isoladas, ocupam cerca de dezenove por cento da superfície terrestre, vivendo em ecossistemas frágeis. Ora, são em geral esses ecossistemas considerados "naturais" os que mais freqüentemente são transformados em áreas naturais protegidas, implicando a expulsão dos moradores. Com essa ação autoritária, em benefício das populações urbanizadas, o Estado contribui para a perda de grande arsenal de etnoconhecimento e etnociência, de sistemas engenhosos de manejo de recursos naturais e da própria diversidade cultural.” (Antônio Carlos Diegues).

         Este foi só um pequeno recorte para termos um ideia da pluralidade de formas com  que a natureza penetra o imaginário e a espiritualidade dos seres humanos. Ainda teríamos muitos outros exemplos riquíssimos a citar, como algumas crenças 
orientais e animistas de diferentes regiões e denominações. Mas o foco não foi fazer o levantamento completo, mas uma breve reflexão para podermos repensar nosso relacionamento com o mundo "natural".




"Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro,
Dizendo-me Aqui estou!
            (...)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),

Obedeço-lhe a viver espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo

E ando com ele a toda hora"
(Alberto Caeiro – heterônimo de Fernando Pessoa)


Percepção Ecológica do Meio Rural

  
Referências

CARNEIRO, H. As plantas sagradas na história da América. Varia História, Belo Horizonte, v. 32, p. 102-119, 2004.

DIEGUES, Antonio Carlos Sant'Ana. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 2001.

DOURADO, D.A.O., CONCEIÇÃO, A.S. & SANTOS-SILVA, J. O gênero Mimosa L. (Leguminosae: Mimosoideae) na APA Serra Branca/Raso da Catarina, Bahia, Brasil. Biota Neotrop.13(4): http://www.biotaneotropica.org.br/v13n4/en/abstract?inventory+bn01713042013

FERREIRA, M. A. PACHA MAMA: OS DIREITOS DA NATUREZA EO NOVO CONSTITUCIONALISMO NA AMÉRICA LATINA.Revista de Direito Brasileira, v. 4, n. 3, p. 400-423, 2013.

OLIVEIRA M. G. Constitucionalismo Ecocêntrico na América Latina, o Bem Viver e a Nova Visão das Águas. Revista da Faculdade de Direito, v. 34, n. 1, p. 123-155, 2013.


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