Resenha do Livro: “História, a ciência dos Homens
no tempo” – José Carlos Reis
Tempo: uma ciência dos homens na história
Rafael dos Santos Campos[1]
O
que é o tempo? Essa pergunta assombra filósofos desde os tempos antigos. Nós o
sentimos, falamos dele o tempo todo, mas não conseguimos
explicá-lo. Aos moldes de Agostinho: se me falam sobre ele eu sei, mas se me
perguntam o que é já não sei. Seria possível apreendê-lo através do discurso? O
problema é que existem várias concepções de tempo e categorias de análise:
existe o tempo da física, da história, da biologia... etc.
Conforme
dito nos Agradecimentos, esta obra é fruto de uma tese de doutoramento cujo
título é “Le lieu epistemologigue et Le temps historique des Annales” defendida
em 1992, no Institut Supérieur de Philosophie da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. Esta tese já se
desdobrou em 4 livros, dentre os quais este, já havia sido lançado pela Papirus
editora em 1994 com o título: “Tempo, história e evasão” e reeditado pela
Eduel agora em 2009.
O
autor José Carlos Reis é professor da UFMG. Sua produção intelectual é extensa.
Reis tem formação diferenciada: graduado em História, possui dois mestrados em filosofia,
doutorado em filosofia e ainda 2 pós-doutorados. É autor de 11 livros, sendo a
maioria deles sobre discussões teóricas e epistemológicas da História. Reis se
interessou pela epistemologia da história, estudando e refletindo sobre a
natureza da produção (fazer) e do saber históricos. Reis se destaca por se
expor como um articulador dos debates exteriores: quando analise uma obra, ele
se dispõe a pensar junto com os principais comentadores da mesma e dar sua
contribuição logo após.
Esta
obra intitulada “História, a ciência dos homens no tempo” (frase de Marc Bloch
em Apologia da História) está organizada em 5 capítulos, todos
tratando sobre a problemática do ser do tempo. O que é o tempo? Pode-se falar
dele objetivamente? É possível apreendê-lo através do discurso? Qual a relação
do tempo com a história? Existem várias concepções do tempo, exemplo: tempo
cosmológico, biológico, psicológico, histórico, etc. Como podemos fazer uma
mediação entre eles? Estas perguntas são abordadas no decorrer da obra, na qual
José Carlos Reis faz um longo diálogo com diversos autores (são mais de 160
referências bibliográficas!), tanto estrangeiros quanto comentadores dos
mesmos, nos inserindo assim com os mais atuais debates sobre o tema proposto e
seus principais comentadores.
No
capítulo 1 “Tempo e terror: estratégias de evasão”, Reis demonstra que o tempo
não parece ser apreensível através do discurso, pois as construções
cosmológicas e fenomenológicas não puderam atingir o tempo em seu ser. O tempo
é causador de terror: as várias sociedades abordadas, como a grega, hebraica,
cristã, renascentista e iluminista, tem suas estratégias de evasão com relação
à sua temporalidade, e isto é compreendido a partir do olhar, ou seja, das
categorias conceituais analíticas emprestadas de Reinhart Koselleck que “fazem
aparecer” o tempo histórico: campo de experiência e horizonte de espera.
Através desses conceitos Reis tenta perceber como cada sociedade pensa a
respeito de seu presente (um passado atualizado) e espera seu futuro, em geral,
desejando-o como um fim.
No
capítulo seguinte “Tempo e história: entre o tempo cosmológico e o tempo da
consciência, o tempo histórico: um ‘terceiro tempo’?”, Reis faz um breve resumo
sobre as diversas temporalidades ou as diversas ordens dentro da categoria de
conhecimento que chamamos Tempo. Existem basicamente vários tipos de tempo:
cosmológico, da consciência, histórico, biológico etc. Questão: é possível
articulá-los, ou são distintos em sua compreensão e ontologia?
Ainda
aqui se sobressai a questão: é possível uma articulação entre o tempo da
consciência ou da experiência e o tempo histórico? A primeira hipótese é de
Ricoeur. É possível, através do tempo calendário. Este é mediador entre os dois
acima. A segunda hipótese é de Koselleck: “o tempo histórico está longe de ser
resolvido pelo calendário e continua sendo a questão mais difícil posta pelo
conhecimento histórico” (p.80).
Prosseguindo,
após discutir sobre as orientações do positivismo e o historicismo, Reis
encerra o capítulo perguntando: “O tempo histórico constitui um terceiro tempo?
Sim, mas, também, não”. Sim, pois parece que o tempo-calendário faz uma
“síntese original” dessa aporia, e não, pois esta mesma síntese faz aparecer de
maneira mais evidente e nítida a dimensão de cada temporalidade (da consciência
e cosmológica) mostrando que a aporética continua, portando, não resolvida.
O
capítulo três vai tratar do tempo histórico e ciência social. A primeira
assertiva é que o “tempo-calendário não é natural, mas uma construção social”.
Teóricos como Koselleck, Merton e Sorokin não aceitam a redução do tempo
histórico ao tempo calendário. “O tempo calendário torna-se significativo
quando transformado em social” (p.102).
O
tempo social é complexo: cada sociedade tem seu regime de temporalidade
peculiar, portanto, o tempo social é múltiplo, heterogêneo, lacunar, e não
uniforme e linear, e ainda não compreende necessariamente o regime de categoria
temporal ocidental: passado, presente e futuro. “Sorokin e Merton concluem, o
tempo social diferencia-se inteiramente do tempo-calendário, que é uniforme
homogêneo, quantitativo; aquele não pode ser jamais assim” (p. 103). Então,
percebe-se que o tempo social se distancia ou se diferencia do tempo
cosmológico (da natureza).
Neste
contexto de aporia, surge a nova concepção de tempo das ciências sociais que
alterará a concepção do tempo entre os historiadores, sobretudo da segunda
geração dos Annales. Reis considera que “ao construírem o conceito
de ‘estrutura’ e ao aplicarem-no à sociedade, construíram uma noção nova de
‘tempo social […] e criam uma nova perspectiva sobre o tempo histórico como um
terceiro tempo” (p.107 e 108).
Com
o conceito de “estrutura social”, surge uma segunda perspectiva do tempo
histórico como um “terceiro tempo”. Nesta “segunda perspectiva do tempo
histórico como um terceiro tempo, ele é percebido mais como “tempo social”,
isto é, os eventos humanos são inscritos em uma simultaneidade interna a
sociedade” (p.109). Mas, “essa perspectiva estrutural é, enfim, anti-histórica”
(p. 115), pois recusa a sucessão, o evento.
Finalizando
a discussão, Reis conclui que o tempo histórico é e não é um terceiro tempo. É
um terceiro tempo, pois,
“como referência dos
eventos humanos a processos naturais que, por serem regulares, põem ordem na
dispersão dos eventos, é parcialmente um terceiro tempo e parcialmente uma
acentuação da ruptura entre os dois primeiros tempos” (132 e 133).
Não
é um terceiro tempo, pois, “ele está do lado do tempo da consciência, mesmo
quando inconsciente, e mais revela do que supera aquela antinomia entre os dois
tempos” (p.133).
O
capítulo quatro vai discutir se a “História Estrutural” dos franceses da Escola
dos Annales vai realizar a mediação entre tempo cosmológico e
o tempo da consciência. A Nouvelle Histoire realizou uma
mudança epistemológica em sua compreensão do tempo histórico, ou seja, uma
mudança na forma de compreensão do tempo histórico. Segundo o autor, esta nova
compreensão epistemológica dos Annales sobre o tempo histórico
deriva de suas novas inspirações para o fazer historiográfico: a influência das
Ciências Sociais seria determinante, pois com ela a interdisciplinaridade seria
uma prioridade nas análises históricas. O tempo aqui é científico e não da
consciência. Os Annales, sob a influência do conceito de estrutura,
agora quer um tempo longo, de longa duração, evitando assim ações
revolucionárias, pois a mudança controlada é mais preferível às mudanças
aceleradas e revolucionárias. Não se crer, portanto, na razão histórica, por
isso não querem aceleração, em oposição à Hegel e Marx. A história sob a
influência da filosofia produziu a aceleração do século XIX. O evento é
perigoso e deve ser controlado e estudado com cuidado.
O
tempo é estrutural: ele não é acelerado, não enfatiza o evento, mas as estruturas,
a longa duração. O tempo da consciência é efêmero, pois, passageiro e relativo.
Ele não traz muito significado devido à sua transitoriedade permanente, seu
fluxo não duradouro. Os Annales se preocupam em como superar o
evento, mantendo-o, pois a especificidade da análise histórica não é a
eternidade, mas a mudança, que traz em si a marca deste ser inapreensível: o
tempo.
Os Annales não
querem cair na armadilha da análise da pura sucessão de eventos, como fizeram
os metódicos, mas não querem descer no embalo do tempo acelerado dos filósofos
do século XIX. Para Reis, os Annales realizaram sim uma
mudança substancial na compreensão do tempo histórico, mas avisa que entre os
historiadores desta escola, não há concordância quanto à esta realização.
“Do
ser do tempo pode-se falar?” é o título do 5º capítulo desta obra que vai
tratar sobre as hipóteses do ser do tempo e dos discursos que tentam
apreendê-lo. É uma discussão prolongada, mas não monótona, pelo contrário,
muito instigante. A discussão é antiga e quem melhor e começamos aqui com
Aristóteles afirmando que o tempo é constituído de não seres: ele já se foi,
não é mais e ainda não o é! Agostinho quando se indaga no livro XXI de suas
“Confissões” sobre o que é o tempo revela essa aporia: o passado já se foi, o
presente já não é e o futuro ainda não chegou. E conclui: o tempo é constituído
de NÃO SERES. O tempo assusta, é terrorista. É um devir eterno, mas que não se
eterniza, pois não seria tempo. O que interessa é que ele se
dá a fala, pois falamos sobre, mas não o apreendemos. E é aí que está aporia:
pensamos, sentimos, o vemos nas rugas de nossa face, mas não o definimos de
forma satisfatória. A busca pela definição do tempo parece ser angustiante:
desde a filosofia grega clássica, os melhores pensadores que temos notícia,
passando pelas grandes autoridades da Idade Média, O Renascimento, a Idade
Moderna e contemporânea, vários autores pensaram e escreveram sobre este ser
que não tem ser e não conseguiram chegar a muitas conclusões totalmente satisfatórias.
Aqui
Reis vai falar de forma breve, ou seja, nos apresentar um quadro do que seria
as hipóteses objetivistas sobre o tempo e as hipóteses subjetivistas dele.
Reis afirma que se pode de alguma maneira falar objetivamente sobre o tempo,
mesmo que de forma inacabada e incompleta. Admitindo esta hipótese é que estas
teses vão se desdobrar pela filosofia ocidental. Para não nos estendermos
muito, gostaríamos apenas de nomear alguns dos autores mais conhecidos que se
encontram em cada escola. Na hipótese objetiva, que compreende o
tempo como exterior à alma, ou seja, cosmológico, sobre o tempo estão incluídas
pessoas como: Platão, Aristóteles, Newton, Kant e Einstein.
Na
hipótese subjetivista sobre o tempo, este é abordado fenômeno da consciência,
este não-ser é considerado de ordem interior, um meio de compreender os eventos
com características temporais (passado, simultaneidade e espera) como extensão
da alma. O tempo aqui seria “a mudança vivida continuamente pela consciência em
sua relação a si e ao mundo” (p.193). Alguns pensadores incluídos nesta análise
são: Platão, Aristóteles, Plotino, Santo Agostinho, Bergson, Bachelard,
Levinas,
Poderíamos
nos alongar mais em nosso texto, mas correria o risco de ficar hediondo.
Esperamos ter oferecido um apanhado geral da obra e ter causado alguma
curiosidade sobre a mesma. Para encerrar, a questão final de José Carlos Reis,
nesta magnífica obra é um subtítulo deste último capítulo: “Tempo da
consciência e Tempo da natureza: haveria relações possíveis?”. A questão
levantada por Ladrière é se “o tempo da é a representação de uma condição
cosmológica ou o tempo cosmológico; é uma construção da consciência” (p.234).
Paul Ricoeur aposta em um solução em sua obra de 1983-1985 “Tempo e Narrativa”:
é possível uma mediação entre estes tempos através da intriga. A poética da
narrativa que é feita através da intriga, realiza a síntese do heterogêneo,
destes tempos que não são imbricados, mas que nesse momento, nesta realização
são harmonizados pela trama da metáfora que imita o tempo quando narramos um
evento. Esta é a atividade mimética que para Ricoeur tem seu sucesso em fazer a
ponte entre tempo da consciência e o tempo cosmológico. Reis encerra sua obra
fazendo esta questão: será que Ricoeur harmonizou esta aporia?
REFERÊNCIAS
REIS, José
Carlos. História, a ciência dos homens no tempo. Londrina:
Eduel, 2009. [Edição Anterior: Tempo, história e evasão: Papirus, 1994].