Herbert Araújo
“Primeira regra na história da
ciência: quando uma ideia nova, grandiosa e convincente é proposta, um exército
de críticos logo se reúne para tentar derrubá-la. Tal reação é inevitável, pois
é assim que os cientistas trabalham: agressivos ainda que respeitadores das
regras do discurso civilizado. (...) Sendo humana, a maioria dos cientistas se
conforma perfeitamente ao Princípio da Certeza, que afirma que, quando há
evidências favoráveis e contrárias a uma crença, o resultado não é uma
diminuição, mas um aumento da convicção de ambos os lados.” (EDWARD O. WILSON,
1994).
O particular fato de deixar a
introdução desta postagem por conta do grande Wilson (que junto com Mayr e
Darwin, considero autoridades imprescindíveis quando tratamos de ecologia ou biologia
evolutiva sem perder de vista a crítica e a construção epistemológica), deu-se
pelo motivo de tratarmos aqui do que pode gerar maior polêmica acerca da
evolução, que é a evolução da espécie humana, no que faço questão de deixar bem
claro (como venho fazendo), qual o posicionamento que eu defendo como sendo o
mais consistente cientificamente, mas sem achar que vou com isso encerrar o
debate, pois, se depois de tanta pesquisa científica bem feita que levantou
evidências anatômicas, ecológicas, bioquímicas, geológicas, paleontológicas,
etológicas... E tão real que hoje chega a nós pelos supermercados, farmácias,
indústrias e universidades sub o termo geral de biotecnologia (junto com a
engenharia genética), não foi suficiente para demonstrar para uma parte dos
intelectuais (muitas vezes leigos em evolução e ecologia) o quanto é real a
transformação, especiação, especialização e evolução (macro e micro) dos seres
vivos, não sou eu que vou realizar tal proeza, com dez textos curtos e
resumidos! Estou apenas tentando trazer à discussão uma parte dos argumentos
evolutivos que, por dolo ou falta de conhecimento mesmo, são geralmente
omitidos quando se critica a evolução biológica.
Aqui
não irei explicar tudo, mas também não vou omitir o design inteligente, que
pode ser um belo exemplo da agressividade supracitada, uma vez que tal corrente
“científica”, não se contentando em ser o grupo que defende apaixonadamente uma
ideia “científica” pouco apoiada pela ciência, vem algumas vezes recorrendo à
justiça nos Estados Unidos (Martins, 2001) para retirar conteúdos evolucionistas
do currículo formal e colocar conteúdo criacionista, pois uma vez que
cientificamente o criacionismo fracassou em se tornar a explicação mais aceita,
começaram a querer brigar no tribunal, e não mais por meio de um discurso
científico autêntico (toda teoria que sucumbe sempre terá alguns defensores no
futuro, mas a teoria que for mais coerente é que vai permanecer como referência
ou se tornar um paradigma científico, um parâmetro confiável que orienta outros
estudos). Como o tema da evolução humana tende a se estender, vou ser bem
sucinto ao descrever a proposta do design inteligente, afirmando que essa proposta de
explicação para a origem das espécies sugere, por exemplo, que o perfeito
ajuste entre os diversos componentes da natureza (fluxos organizados de
energia, adaptação morfológica dos seres vivos às suas formas de vida e a
complexidade da organização bioquímica dos sistemas vivos, sobretudo os microscópicos,
seriam o resultado de um projeto inteligente, logo, uma evidência em favor do
criacionismo, pois Darwin não entendia como as células funcionavam).
Um
professor de bioquímica da Universidade
Lehigh, na Pensilvânia (Behe), lançou um livro que se
tornou muito famoso e cujo título é “A Caixa Preta de Darwin”. Neste livro, o
autor afirma que os conhecimentos de sua disciplina suplantam o evolucionismo e
que, uma vez que sistemas bioquímicos são compostos por várias partes
interdependentes e que, já que todas as partes são necessárias para o seu
funcionamento, tais sistemas só podem vir à existência completamente prontos,
impossibilitando uma evolução de tais sistemas, uma vez que eles não poderiam
existir de forma simplificada, Behe os denomina “sistemas irredutivelmente
complexos” e tais sistemas, que também podem representar órgãos, são apontados
como um dos argumentos mais fortes do design inteligente.
Em primeiro lugar, repito que afirmar
que descobertas de um único campo científico tenham plenos poderes para anular
o conhecimento de outras áreas, é um reducionismo desmedido, é muita pretensão!
Em segundo lugar, repito também que dados bioquímicos são uma pequena parte da
enorme construção teórica que sustenta o evolucionismo, mas se é para recorrer
a eles, vamos lá... A anemia falciforme é doença humana de caráter hereditário
que resulta de uma mutação que altera o sexto aminoácido da β-globina (proteína
do sangue). Assim, ao invés desta proteína ter o ácido glutâmico na sexta
posição da cadeia, ele é substituído pela valina, o que altera o dobramento da
proteína e gera hemácias (células vermelhas do sangue) com deformações que as
fazem lembrar foices - falciforme significa em forma de foice.
Os indivíduos homozigotos para o gene da
anemia falciforme (que possuem a dose dupla do gene) possuem a doença em sua
forma grave e apresentam um complexo quadro de complicações em sua saúde, algo
evidentemente prejudicial à sua sobrevivência. Por outro lado, os heterozigotos
(“gene em dose única”) apresentam uma forma da doença praticamente
assintomática. O curioso nessa história, é que as hemácias falciformes
apresentam maior resistência ao protozoário causador da malária e, por isso,
mesmo que a capacidade de transportar oxigênio seja menor (que o normal) nos
portadores da doença na forma branda, essa característica pode ser vantajosa em
regiões onde a malária é uma ameaça à saúde humana. Lembram que no “Argumento
3” foi mencionado que na prática, a evolução é uma flutuação populacional que
tende a caminhar para o aumento da linhagem que tem características vantajosas para um contexto ambiental e por isso começa a aumentar em número dentro da população? Pois bem, o gene
causador da anemia falciforme é encontrado com maior frequência nas regiões
onde são comuns os casos de malária. Simplificando, onde há mais malária, há
mais gente com essa informação genética e dependendo da época em que ocorrem os
surtos da malária, pode haver ainda um aumento da frequência do gene causador
da anemia falciforme. Logo, estamos diante de um exemplo bem nítido de aspectos
ambientais que alteram a estrutura de populações humanas em nível observável.
Não é design inteligente, pois é uma doença que pode gerar complicações até
letais. Ademais, se essa doença ocorre também em regiões onde a malária não é
um risco à população, também aqui o design inteligente se mostra incapaz de
explicar o fenômeno tão bem como o faz a seleção natural.
Ainda temos como evidência bioquímica o
citocromo c (uma outra proteína, com pouco mais de cem aminoácidos), cujas
sequências de aminoácidos, quando comparadas, mostram outro exemplo, no mínimo, digno de menção: o citocromo c dos
humanos é igual ao do chimpanzé, se comparado com o das baleias, diferem em
oito posições, se comparado ao citocromo c de uma ave, a diferença se verifica
na posição de treze aminoácidos e assim segue. Se as proteínas revelam aspectos
genéticos e esta sequência retrata os parentescos evolutivos há muito
conhecidos, temos mais uma forte evidência bioquímica da evolução humana, mas vamos
sair desse mundo microscópico, pois a evolução tem mais coisa para ser pensada.
Um dos problemas mais graves que vejo
no design inteligente é que ele só explica as coisas que já estão ajustadas, o
que o torna meio redundante ou mesmo estático, pois traz exemplo daquilo que já
está ajustado e diz que é resultado de um projeto inteligente, mas não explica
os desajustes que existem na natureza, o que a evolução biológica explica muito
bem. Só para mostrar algumas lacunas (para não denominar crateras, buracos
negros, muito obscuros mesmo!) no design inteligente, vou lembrar que um dos
pontos fundamentais do design inteligente é falar que as estruturas existentes
na natureza (como os órgãos, por exemplo) apresentam forma perfeitamente
adequada à sua função. Será mesmo? Então o que dizer de formas que seriam
adequadas a uma função que não cumprem? Não estou falando de erros genéticos
não, falo de morfologia típica de espécies mesmo e dou exemplos: nos
caranguejos, os olhos são sustentados por dois pedúnculos (pequenos suportes
alongados para os olhos), entretanto, há espécies nas quais os pedúnculos estão
lá, mas não há olhos! É como um tripé sem luneta. O que há de inteligente em
uma criatura apresentar suporte para os olhos e não apresentar olhos nesses
suportes? É como jogar a luneta fora e guardar o tripé! Posso citar um exemplo
ainda mais belo: como o design inteligente explica o fato de uma espécie de
rato das cavernas ser cego e ter olhos enormes? Adiante, citarei
características anatômicas humanas que também representam uma barreira ao
design inteligente.
Enquanto pesquisava sobre o desing
inteligente, vi uma afirmação muito triste em um pdf com o título “Evolucionismo
Darwinista ou Projeto Inteligente?” (Augusto Pasquoto era o nome que constava):
“a teoria darwinista é cega, isto é, não admite finalismo na evolução dos seres
vivos. Tudo acontece às cegas, sem planejamento. As mutações ocorrem ao acaso
e a seleção natural entra em ação
quando aparece alguma mutação favorável”. Em primeiro lugar, o mais inteligente
aqui é realmente admitir que não haja finalidade inteligente em colocar olhos
enormes num animal cego (a menos que se prove o contrário), pois já que ele
vive num ambiente escuro, onde a visão não é necessária à sobrevivência, nem
mimetismo nem camuflagem poderiam justificar isso! Ora, a seleção natural
permitiu esses órgãos inúteis e sem finalidade sim, pois eles também não fazem mau
nenhum ao rato e o mesmo se pode afirmar sobre o pedúnculo do caranguejo, a
seleção natural só elimina aquilo que é
prejudicial. Uma linhagem de caranguejo sem olho pode viver muito bem sem olhos
se seu ambiente permite isso, tanto é que ele vive assim. Em segundo lugar, por
falar em cegueira, antes de afirmar que “a teoria darwinista é cega”, acho que
esse autor deveria ter observado que se as mutações ocorrem ao acaso, não
significa que a evolução não faça sentido ou que a evolução ocorra por acaso.
Preciso repetir que ela é orientada por aspectos ecológicos muito bem
compreendidos e descritos? (repito, leiam ecologia e evolução mesmo, antes de
falar essas grosserias, senão o pessoal vai encontrar essas apologias em pdf e
vai achar que é trabalho científico!).
Outro fato que dá um bom apoio à
evolução é a existência dos órgãos vestigiais (órgãos primitivos que são
atrofiados por não possuírem mais utilidade). São citados alguns pela anatomia
humana: apêndice vermiforme no intestino, que na espécie humana é bastante
atrofiado e pode ser retirado por procedimento cirúrgico, sem danos ao
organismo, enquanto que essa mesma estrutura se encontra desenvolvida em
herbívoros, onde abriga microrganismos mutualísticos que degradam a celulose;
cóccix, porção caudal da coluna vertebral considerado um vestígio de cauda e,
consequentemente, mais um sinal de parentesco com outros animais, como macacos,
por exemplo; a prega semilunar, encontrada no ângulo interno do olho, que
constitui um vestígio da membrana nictante de certos anfíbios, répteis e
mamíferos.
Do mesmo modo que há órgãos que se
apresentam atrofiados por não mais desempenharem suas funções originais, também
há órgãos que, antes existindo para uma função, se tornaram mais elaborados e
passaram a desempenhar outra função, permitindo inclusive explorar outros ambientes.
O exemplo que trago aqui é o da bexiga natatória, que pode servir para mostrar
que um órgão, mesmo sendo altamente especializado para sua função, pode ter
evoluído e passado a exercer uma função diferente. A bexiga natatória é um
órgão que em peixes ósseos, serve para contribuir com a flutuabilidade no meio
aquoso, uma vez que ao armazenar gás diminui a densidade do corpo, foi a partir
dessa estrutura que evoluíram os pulmões dos demais vertebrados, uma vez que há
peixes pulmonados, as espécies (de qualquer grupo de animais) que apresentam
pulmões não apresentam bexiga natatória, e os que a apresentam (peixes ósseos),
não possuem pulmões. Digo mais, e tanto o pulmão como a bexiga natatória,
surgem no embrião a partir de uma evaginação do tubo digestório, dado um tanto
contundente, uma vez que o desenvolvimento embrionário recapitula a evolução de
um animal e as suas relações filogenéticas.
Bem, ao iniciar o texto sobre a
evolução humana, meu intuito era descrever algumas etapas de desenvolvimento de
algumas cronoespécies e morfoespécies que nos ajudariam a ilustrar as etapas
que se sucederam na nossa evolução, mas como eu precisei esclarecer algumas
objeções que andam fazendo sucesso, acabou não restando espaço (reparem que
este texto está três vezes maior que os demais). No entanto, se ainda não ficou
suficientemente claro o que a evolução tem a dizer acerca de nossa espécie, vou
apenas mencionar mais dois últimos detalhes: a) A espécie humana não é um “macaco superevoluído", mas sim uma linhagem distinta de primatas que teve sua própria história
evolutiva, assim como todos os outros animais, primatas ou não, e todos os
demais organismos de modo geral (caso não entenderam, releiam o “
Argumento 3”); b) Se o seu orgulho ainda não lhe permite
se reconhecer primata, veja que os primatas são caracterizados por alguns
caracteres morfológicos, como cinco dedos nas mãos e nos pés, dedo polegar da
mão mais ou menos oponível de acordo com a espécie, massa encefálica proporcionalmente
mais desenvolvida que nos outros mamíferos, olhos dispostos na parte frontal da
cabeça e uma forte tendência à postura bípede. Qual destas características
você, caro leitor, humano e racional, não possui? Viu? Você não é um macaco,
você é um mamífero, da ordem dos primatas, um ser humano.